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14/02/2013

JOSÉ FARIA




A LUANDA QUE ELE CONHECEU

Quando o meu grande amigo José Faria se apresentou no Quartel do Grafanil em Março de 1970, fez um telefonema a meu pai a dizer que estava em Luanda, visto ele ser de Mirandela e ainda ser primo do meu pai,

Como era amigo do meu tio André do Patrocínio que esteve em comissão no N.R.P. Vasco da Gama no ano de 1964 a 1967, foi com essas referências que ele chegou a Luanda para procurar a Família Antunes Gonçalves, depois do telefonema, meu pai foi ao Grafanil, ao seu encontro, foi ai que eu o conheci. Em Abril de 1970 meu pai foi para a África do Sul e eu, meu irmão Fernando e minha mãe viemos para Portugal onde se encontravam meus irmãos Victor e Melita.

José Faria ficou a viver em casa dos meus pais sempre que vinha de fim de semana, meu amigo não tinha carro, durante esses primeiros tempos, não saía muito. O Quartel do Grafanil ficava distante do Centro da cidade e mesmo do Bairro Popular nº 2 onde residíamos.

Só quando tinha boleia ia até ao Bairro Popular nº2 e depois, utilizando o machimbombo, que o levava do Bairro Popular nº 2 ao largo da Mutamba, no coração da cidade, aventurando-se depois ou a pé, ou á boleia, ia para a Ponta da Ilha, praia que era a mais frequentada, e era complementada por um frequentadíssimo bar. “A Barracuda“ onde muitos madiés vendiam o seu artesanato. Também ia, por vezes, comer um gelado ao Baleizão, à Versalhes ou à Pólo Norte, na avenida Salvador Correia, mas muitas vezes o seu destino era a encantadora ilha do Mussulo que ficava um pouco a sul de Luanda e era local obrigatório para muita gente visitar nos fins-de-semana, tendo ele passado parte de uma tarde de um domingo com outro soldado e pessoas amigas a percorrer o mar circundante, indo até a ilha dos Padres, dentro de uma pequena lancha motorizada por mero prazer lúdico.

Luanda já era uma cidade, grandiosa, propriamente dita e de Musseques nas zonas periféricas. Nas várias zonas da cidade do asfalto e do cimento, habitadas essencialmente por brancos e mestiços. Existiam importantes vias como as avenidas dos Combatentes da Grande Guerra, Avenida do Brasil, Avenida dos Restauradores de Angola, Avenida do Brasil, Alameda D. João II e a bonita marginal (Avenida Paulo Dias de Novais) que limitava a lindíssima baía de Luanda a leste, percorria toda a estrada da ilha do Cabo, ia passear ao largo da Mutamba e ao Largo de Diogo Cão, junto da zona portuária no extremo norte da marginal, passeava na zona da igreja da Sagrada Família, gostava muito de ir à Maianga, e pelo estádio dos Coqueiros.

Mas também viu vários musseques, manchas de pobreza na periferia da progressiva cidade que era Luanda naquela época, e habitados essencialmente por negros. Musseque dos Pescadores na Ilha, o Marçal, o Prenda, o Sambizanga, o Bairro Operário e outros nomes que se foi habituando a ouvir enquanto por lá esteve. Os musseques eram um amontoado de pequenas habitações feitas de lata, madeira e barro, tendo tectos de Lusalite (fibrocimento), zinco, latão ou folhas de palmeira, com estreitas ruas de terra batida, sem água canalizada nem saneamento básico.

Confessou-me um dia que se ficava com uma péssima impressão da cidade, mas não demorou muito tempo que começou a encantar-se com aquele mundo.

Na altura, Luanda tinha 600.000 habitantes e era a segunda cidade de Portugal depois de Lisboa. Hoje tem cerca de 6.000.000.

A zona da Boavista onde ficava as refinarias de petróleo, e que limitava a baía a norte, a zona do Cacuaco também era visitada, para saborear o belo marisco. Mais tarde comprou uma Mota marca Honda CBR 350

À noite, muitas vezes ia dançar (ou ver dançar) o merengue, a rebita, ia aos bailes nas zonas dos bairros Populares. Principalmente gostava de ir ao Desportivo União de São Paulo, ao Clube do Sarmento Rodrigues e ao Clube do Bairro Popular nº 2, outras vezes ia ao cinema: lembra-se de ver filmes no Miramar, um cinema ao ar livre mas com uma cobertura por causa das chuvadas tropicais, que ficava numa zona alta e rica, e tinha uma vista deslumbrante sobre a Baia e a Ilha de Luanda. Mas havia também o Colonial, o Tropical, O Império, o Avis, o Restauração e outros.

Em diversas ocasiões ia beber um copo ou ver um espetáculo a casas noturnas como a Gruta, ou o Tamar na restinga, mesmo à entrada da ilha, à esquerda. À direita ficava o fino Iate Clube. No interior da cidade havia, por exemplo, o Maxime ou o Copacabana.

A ilha do Cabo era separada da parte continental por uma estreita faixa de água atravessada por uma ponte. Imediatamente antes da ponte e do lado da cidade, à esquerda, erguia-se a Fortaleza de S. Miguel.

Mas, o que se repetia noite após noite eram as cavaqueiras, com os amigos e com uns finos de Cuca ou Nocal na mesa e a apanhar um ar mais fresco, principalmente no Restinga Bar.

O José Faria no tempo que esteve no Serviço Militar esteve no Grafanil sendo mais tarde transferido para o R.I. 20. Fez duas comissões no Leste de Angola. Muitas histórias tem ele para contar, mas essas ficam para outra ocasião.

Como todos que estiveram em Angola sabem que o clima de Luanda era aprazível. Há duas estações: a das chuvas ou verão, com o sol sempre aberto, mais quente e mais húmida, que durava de Setembro a Maio, e a do cacimbo, em que o calor era menos intenso e decorria em Junho, Julho e Agosto.
José Faria confessou-me que se ia apercebendo, que não havia racismo digno desse nome. A segregação era essencialmente económica.

Um caso curioso e que atesta bem a forma de sentir e pensar dos nativos foi-me contada da seguinte forma: um operário negro (que ele conheceu ), especializado, já de meia-idade e que trabalhava na reparação de automóveis na Casa Americana, vivia no musseque. Katambor, como ganhava razoavelmente, o Silva que está hoje nas oficinas da EMEF, e o pessoal da Oficina convenceu-o a alugar uma vivenda na zona da Madame Berman. Ele assim fez mas, ao fim de poucos meses saiu e regressou ao sítio onde estavam as suas origens e onde se sentia bem, o musseque Katambor.

Também se lembra perfeitamente de ter visto negros e branco a laborar juntos em obras de construção civil e outros trabalhos, e até a serem os nativos a darem ordens aos ditos colonos.

Nos últimos meses de Serviço no Exercito Português, foi à Refinaria da Petrangol, oferecer os seus préstimos. A sua candidatura foi muito bem vista, mas só se poderia concretizar depois de se desvincular do Exercito Português.

Numa festa no Clube Transmontano, cuja causa já não se recorda, travou conhecimento com uma funcionária dos antigos Correios, Telégrafos e Telefones ( CTT ) de Luanda. A Isabel Costa que era mais velha do que ele, sete ou oito anos, cabelos loiros e curtos, franzina mas muito ativa, com um magnífico Fiat 850, separada do marido, com dois filhos e vivendo só num apartamento de três assoalhadas duma torre situada no Bairro Prenda perto do aeroporto. Não passou muito tempo e já lá estava a dormir e a fazer vida com ela. Saiu do Exercito no ano de 1973, e empregou-se numa empresa de Cimentos a “ Secil “.

Em 1974 dá-se o 25 de Abril e tudo começou a mudar, ao princípio lentamente mas em 1975 os acontecimentos iriam precipitar-se de forma dramática em Luanda, cada vez mais queria acompanhar melhor o desenrolar dos acontecimentos na Metrópole, nomeadamente pela leitura dos jornais “A Província de Angola” e “O Diário de Luanda”, mais o primeiro, e do semanário “Expresso” que ainda ia de Lisboa e chegava a Luanda ás 2ªs Feiras.

Mas a situação nas colónias, nomeadamente em Angola, também era alvo da sua atenção, pois tinha bons quadros, apesar da sua ideologia pró-comunista. Rosa Coutinho encarregou-se de dar uma preciosa ajuda para a sua reabilitação. prática, desarmado a população principalmente branca.

Em Luanda, a população branca, que manifestava a intenção de não abandonar o território, ia-se alinhando de forma mais ou menos explicita com os movimentos de libertação: os mais ricos com a FNLA, a média burguesia mais direitista com a UNITA, a gente de esquerda com o MPLA.

Sobretudo depois dos acordos do Alvor e de o general da Força Aérea Silva Cardoso ter assumido as funções de alto-comissário, grupos armados dos três grupos que reivindicavam cada um para si os maiores contributos para a independência, cuja declaração já estava aprazada para o dia 11 de Novembro de 1975, infiltraram-se na cidade e foram abrindo delegações, especialmente em pontos estratégicos.

E foi aí que, aos poucos mas de forma imparável, começou a guerra civil.

As populações negras, de várias etnias, viram-se forçadas a deixar Luanda pois a situação ativou, de forma notória, os ódios tribais. Como a etnia predominante na zona eram os quimbundos, aos quais o MPLA estava umbilicalmente ligado, os apoiantes deste movimento eram os que iam ficando na cidade.

As populações brancas, que não foram molestadas, salvo casos pontuais, de alguns merceeiros e de taxistas, viram-se envolvidas pelo fogo cruzado dos tiroteios que, muitas vezes, saíam dos bairros negros e vinham para o asfalto. E o pânico apossou-se da maior parte das pessoas que decidiram abandonar Luanda, procurando fugir para Portugal Continental, mas também para o Brasil e para a África do Sul que, ao tempo, ainda vivia em regime de apartheid.

Foi o tempo dos caixotes de madeira contendo os bens que era possível tentar transportar e da gigantesca ponte aérea. E as lutas e o pânico foram-se estendendo a todo o território angolano.

Entretanto, a debandada dos colonos continuava e cada vez mais intensa. Quando ele diz colonos está a ser redutor, pois muitos negros e mestiços também abandonaram a cidade. Mais…todo o território.

José Faria recorda-se de uma bela e elegantíssima negra, muito bem vestida que, passava sempre à mesma hora em frente ao Restaurante onde almoçava, diz ele que estava enfeitiçado pela garina mas com os acontecimentos e estando a viver com a Isabel Costa, nunca a abordou,

Lembra-se que numa tarde, uma estudante branca (ele referia-se sempre à cor da pele pois isso era importante para se perceber melhor o que era a Luanda daquela época) muito conhecida, não por mim, estava no jardim perto de sua casa, sentada, na Vila Alice a estudar, quando foi atingida mortalmente por uma bala perdida. Foi uma ocorrência triste que ainda fez aumentar mais o pânico na população de raça caucasiana. Muitas pessoas deixaram Angola logo no mês de Maio de 1975.

Conta ele que uma vez, a Isabel Costa resolveu cozinhar muamba, um prato à base de galinha mas com uma série de condimentos africanos que o poderiam tornar muito picante e lhe davam um paladar desconhecido para ele, que ele gostou e ainda hoje passados estes anos todos, quando vem a minha casa pergunta pela Muamba!

A sua companheira, a Isabel Costa entretanto, vendeu o Fiat 850 e comprou um pequeno Mitsubichi Colt. Com medo de ficar só no seu apartamento afastado da baixa citadina e sobretudo pelas zonas perigosas que tinha de atravessar ao ir para o trabalho ou para o centro, também largou o T2 e alugou um outro apartamento na baixa. Ele vendeu a mota Honda CBR350 .

Entretanto, a cidade que ele conhecia tornava-se cada vez mais descaraterizada. Como estava mais triste e feia… Restava a vista sempre linda da baía, e da Marginal.

Nas montras não se via artigos para vender, e nas ruas cada vez menos pessoas e menos tráfego automóvel. Era uma cidade moribunda, quase fantasma. Viam-se muitas camionetas com caixotes, em direção ao Porto de Luanda.

Pouco antes a Isabel disse-lhe que estava grávida. Decidiram que não era nada oportuno ter um filho naquela altura e assim se cumpriu.

A Isabel continuava a pensar em continuar por lá, mas os acontecimentos precipitaram-se e resolveram embarcar, para Portugal. Começava a escassear os produtos alimentares.

O fim do mês de Setembro aproximava-se e o José Faria, depois de a companheira ter embarcado, começa a ir todos os dias para o Aeroporto afim de arranjar vaga nos voos da Ponte Aérea, embarca no dia 15 de Outubro de 1975.

Regressou a Portugal com a ideia de voltar, e foi viver para Mirandela- Aguieiras sua terra natal. Já em Portugal contactou a Petrangol. Ao fim de pouco tempo disseram-lhe para fazer uns exames médicos e preencher a papelada para poder ser admitido a ir trabalhar na refinaria.

Gozou umas merecidas férias. Foi para Luanda em Janeiro de 1976 e vinha a Lisboa de 6 em 6 meses.

A Isabel Costa também voltou a Portugal, em 01 de Outubro de 1975, ainda na Ponte Aérea, e foi viver com a avó e os filhos numa localidade perto de Mirandela - Mascarenhas. A relação com o Carlos manteve-se durante cerca de dois anos. Passado esse tempo a relação deles acabou.

Recebeu uma proposta melhor e foi para uma plataforma de extração de Petróleo na Venezuela, e nunca mais viu a Isabel Costa.

Meu grande amigo José Faria nunca mais voltou a Luanda, e sempre que vem a Lisboa é com os amigos da Confraria do Penico Dourado, que nos reunimos e fazemos umas jantaradas para recordar estes momentos passados e presentes. Foi num desses encontros que ele me deu estes pequenos apontamentos dos cinco anos da sua estadia em Luanda, dois dos quais ao serviço do Exercito Português.

ZÉ ANTUNES
1970



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