A Família Antunes Gonçalves é uma das tantas que existem por aí vivendo na normalidade. É formada de tipos comuns, encontrados em todos os cantos da cidade, feiras-livres, praças, saídas de fábricas, escritórios, paragens dos maximbombos... Famílias feitas de vidas ocultas que não buscam figurar em capas de revistas, coluna social de jornais – não vale a pena –, mas que não passam despercebidas ao espectador divino, que as tem em alta conta. Transmontano, Júlio, o marido, não foi o único do bairro a ter o sobrenome de Gonçalves, do avô paterno, Carmitas, a esposa, de Torres Vedras, manteve incólume o sobrenome: Antunes. Júlio é um homem simples, sem estudos, trabalhador, metódico.
Como a maioria dos habitantes do Bairro Popular nº 2, Aprecia um bom bacalhau e torce pelo Benfica, sem fanatismos. Veste-se com roupas simples, sempre limpas e combinando as cores, e por isso é tido como alguém de bom gosto. Em casa, jamais andou de calção ou sem camisa. Cuida da aparência porque sabe que assim agrada à esposa. Seu carácter sociável não é de mera fachada, não. Goza de respeito e prestígio graças ao profissionalismo com que encara o trabalho. Pontual no horário de entrar e sair da empresa, diz aos chefes – quando insistem nas horas extras –, que tem outro negócio a cuidar, a família.
Ninguém discute porque já se sabe que não abre mão disso, e que para evitar as tais horas a mais, trabalha com intensidade – sem molenga –, e nunca contesta as suas responsabilidades das tarefas que lhe são direccionadas.
Como encarregado de Obras tem que impor a sua sabedoria e personalidade. O temperamento do Júlio é sereno e sociável, fecundamente utilizado para conquistar a amizade e a confiança dos filhos, com os quais gasta prodigamente o tempo. Sua figura cresce contínua e aprumadamente diante de seus filhos, porque o exemplo da pessoa amada sempre exerce um suave e misterioso império naqueles que a amam. Júlio é do tipo que sabe sofrer em silêncio e rezar com insistência.
Nas situações em que todos perdem a cabeça, não se desespera e pensa o lado positivo das coisas, o que lhe aumenta a autoridade. Os traços de pai vão se desenhando nos filhos sem que estes o percebam – notarão quando, homens formados, não tiverem mais o pai, pois o amor reflete sempre a feição moral de quem o inspira. Júlio tem muitos amigos e sabe conservá-los, sacrificando-se por eles sem nada esperar em troca.
No trato com os demais, tem a palavra oportuna que estimula e orienta. Maria do Carmo ( Carmitas) é mãe, só mãe – o que é divino. Ainda é jovem, - tem cinco anos menos do que Júlio – e a juventude lhe é ressaltada pela beleza. Seu temperamento é alegre, bem-humorado, onde se combinam maravilhosamente uma requintada feminilidade com suave energia e sólido sentido prático. É serena, mas quando fica brava, fica mesmo. Entretanto, tal estado de alma lhe é raro e, por conhecê-lo, os filhos evitam despertá-lo, propósito nem sempre alcançado... Carmitas, não é o tipo de mulher que necessita de elogios.
Possui o instinto de mulher simples, que a leva a furtar-se de ostentações ou chamar a atenção. Foi criada para rodear de afeição aos que ama e dar-lhes um lar onde possam expandir-se em singela felicidade. Percebeu que o salário do marido nem sempre chega dedica-se a trabalhar numa banca de verduras no kinaxixe. Bem-humorada, mostrou às amigas, que a fustigaram pela opção tomada, ter lucrado mais ao se tornar dona do seu próprio tempo, que passou a organizar criativamente, de modo a poder dispor de algumas horas diárias para ler, estudar, foi umas das primeiras mulheres a tirar a carta de condução em Luanda sem sacrificar a família. Em casa, ao ler e estudar os assuntos da sua profissão, as chamadas contas de merceeiro.
Carmitas se mantém actualizada. Ao unir seu gosto profissional ao sentimento materno, que penetra na alma dos filhos e faz descobrir o espírito humano com sabedoria, avalia profundamente os acertos e desacertos da sua ciência. E assim, cada vez que olha para um filho e o vai descobrindo, vê nele um potencial maior que em si própria, porque é a continuidade, que deve desvendar e preparar. Vislumbrou que a tarefa formativa dos pais lhes amplia as realizações pessoais. A casa dos Antunes Gonçalves é sem luxo, mas de muito bom gosto. É casa própria e do tipo vivenda, comum nos velhos bairros da cidade: pequeno jardim fronteiriço, sala de estar de onde parte um corredor de acesso a três quartos à esquerda, banheiro à esquerda , cozinha no final e um quintal grande.
A estreiteza económica da família é disfarçada na casa pela limpeza e bom gosto na decoração, feita de objectos simples que, ajeitados pelas mãos de Carmitas, ganham beleza incomum. E isso faz todos sentirem vontade de logo retornar ao lar. Júlio e Carmitas casaram-se cedo e, sendo jovens ainda, têm 4 filhos: Zé Antunes, com 12 anos; Fernando, 10 anos; Victor, 9 anos; e Amélia, 7 anos;
O salário do Júlio dá para manter a família, sem extravagâncias, caprichos ou descuidos orçamentais. Várias despesas são reduzidas com a produção caseira de ovos, galinhas e patos. No quintal – como já foi dito, esses espaços ainda sobrevivem em bairros antigos e populares, Um pé de goiaba, outro de mamoeiro e ainda um sape sapeiro formam o pomar e concluem o círculo da casa. Valeu a pena insistir; foi vitória granjeada pela constância. Agora, cada filho sabe que a roupa de uso, ao ficar curta, deve ser passada ao irmão seguinte; o mesmo ocorre com livros e outros materiais escolares: “É preciso cuidar bem das coisas”, é ladainha que todos já sabem de cor e salteado e estão carecas de ouvir, como se diz. A situação financeira não permite ter empregada, e obriga cada filho a se encarregar de uma parte dos afazeres domésticos.
Tirar o pó dos móveis, lavar o chão, lavar a roupa, ajudar na cozinha, pôr ordem na sala de estar, quartos e quintal, são tarefas distribuídas entre todos. Além disso, os pais estabeleceram que ninguém é empregado de ninguém. Cada um que zele pelas coisas pessoais. Nada de sapatos, roupas, toalhas e brinquedos espalhados pela casa. Os infractores serão penalizados na forma da lei. Ai de quem não obedecer... E tem mais: o interessado arrume a própria cama e ordene a parte que lhe cabe no guarda-roupa.
Cama bem arrumada, não à moda francesa, mas à espanhola: lençóis duplos e sacudidos, colchão espalmado, cobertores alisados e colcha sem amarrotar. Terminam por aí os encargos? Nem por sonho. Somam-se às tarefas diárias – e isso cabe aos rapazes – os serviços mais pesados: pintura da casa, conserto das calhas e telhado. Júlio encarrega-se da parte eléctrica, hidráulica e alvenaria, com a ajuda dos filhos... Júlio não aceita o falacioso argumento dos preguiçosos e mesquinhos de que para casa não vale a pena tanto zelo. “Vale – diz Júlio –, porque é o meu lar; o lugar onde vivem os meus, e onde recebo parentes e amigos, que julgo dignos da ordem e limpeza: uma casa com portas emperradas, mato no jardim, pintura encardida, vidros quebradas, ferrugem no portão, vidros riscados, fios electricos salientes, espelhos de luz partidos, reboco caído, bem reflecte a corroída alma de quem ali mora”. Ê lá, Júlio...
O sonho da casa própria aos poucos vai-se concretizando. Sobre a Mélita recai os cuidados menores, o preparo das refeições e costuras mais elaboradas. Aniversário! Quando há algum, o que por ali não é raridade, prontamente se põe a mesa de festa. O segredo de tanta eficiência – outra batalha vencida pela constância de Carmitas reside nos seus dotes culinários, e há sempre bolo e apagar as velas.
Quando Júlio e Carmitas souberam há algum tempo que em certo país europeu um casal que dava tarefas aos filhos foi processado criminalmente por escravidão de menores, ou besteira desse teor, comentaram tristemente entre si que não estão ensinando as crianças a perceberem que elas não têm somente direitos diante dos pais, mas também deveres filiais-paternais, além dos fraternais; e que tão cheios de satisfações, facilidades e benesses, esses molengões papa-direitos trarão muitas dores aos pais e às famílias que constituírem, que certamente não durarão muito, e trarão grandes despesas à sociedade.
Ao partir Júlio para o trabalho, Carmita prende os cabelos com uma bandolete para não atrapalhar na lida da casa e, à noite, antes da chegada do marido, solta-os penteando-os sobre os ombros e põe uma roupa simpática para recebê-lo. Está sempre bonita, vestida com sobriedade e bom gosto. Para a filha, ela diz que mulher desmazelada e cheirando mal não pode chorar marido que chegue tarde ou bata em outra porta. Carmitas é a primeira a levantar e a antepenúltima a deitar, cedendo ao Júlio o cuidado de aguardar o retorno dos filhos da escola; e o marido cumpre o encargo aproveitando o sono da casa para preparar o que levará para o trabalho no dia seguinte.
O dia-a-dia de Carmitas não é fácil e ela diz o mesmo que todas as mães de famílias numerosas dizem, seja a mãe dos Sabinos ou a dos da Silva, variando apenas nos nomes dos filhos: “Melita, é hora de te aprontares para ires para a escola; acorda”. “Oh, não, Zé, põe esse cachorro para fora de casa”. “Ôôô Fernando, eu falei para olhares o leite...”. “Victor, arruma a tua cama, menino”. “Júlio, não esqueças o remédio do Fernando”. “Bandido...”. “Meu Deus, não aguento mais; me leva embora, vai!”. “A mãe não tem dinheiro”. “Depois, depois filho”. “Ai, desaparece com esses patins daqui, que riscas o quintal todo!”. “Por que estás a chorar?”. “Não fales com a boca cheia”. “Vai lavar a cara”. “Deus te abençoe, seu diabinho”. “Menina, onde você aprendeu a responder assim?”. “Nada de palavrão, menino!”. “Melita, o arroz está no fogão?”. “Está doendo? Deixa de se queixar”. “Um beijo”. “Tchau...”. “Como foi o dia, Júlio?”. “Foste bem no exame Zé?”. “Puxa, que bom, tu compraste o remédio”. “puxa, a que ponto chegamos!”. “Olha para mim e responde: foste tu que partistes isso? Que inferno de vida”. “ meninos vão estudar e deixem a bola”. “Já vais levar com o cinto, meu maroto “
Carmitas integra a sociedade médica da rua. Como é bem sabido, pois é de fácil observação, e já foi afirmado por muita gente, até por membros de famílias numerosas de outros países, em bairros humildes se desenvolve uma medicina chamada familiar, que reúne todas as mães da rua. De tradição oral, as técnicas, avalizadas por farta base empírica, são passadas de geração a geração, constituindo sólida cultura científica que, de verdade, poupa não poucos gastos com a concorrência médica de diploma e canudo, só chamada como recurso extremo, e depois de esgotadas todas as aplicações de emplastros, emulsões, chás de ervas comuns ou das inacreditáveis e raras, efusões, e consultas a todas as mulheres da vizinhança no anseio de desenterrar alquimia olvidada em alguma cachola. Acrescente-se o que avó alguma deixou de frisar – elo jamais quebrado no correr dos séculos: “O suadouro é medicina base de todas as demais.
De preparado que não faz transpirar ou suar em bicas é para desconfiar”. “ tantas gemadas com cerveja preta eu tomei para me fortalecer”. Como bem lembrou um filho de família numerosa e pobre, do norte de Portugal, se os laboratórios conhecessem tal ciência, rica em receitas, certamente colocariam em suas embalagens: “só para uso externo”. E o resultado é que criança nunca morre... Remédio eficaz e concorrente do suadouro – quem dele não padeceu lance a primeira pedra – é o óleo de rícino, dotado de grande prestígio entre as mães para acabar com a manha de filho que se faz de doente para iludir o banho ou não ir à escola.
Basta citar o milagroso medicamento que o kandengue já vai dizendo: “Já estou bom, mãe; já estou bom!” De verdade, é tido em alta conta pelas mães esse santo remédio.
1978