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30/08/2012

BAIRRO POPULAR



Devo falar de um bairro – o Câncio Martins – simplesmente por ter morado nele a família Antunes. Nada de comparações, sempre odiosas, com outros lugares: melhor, pior... Até porque os Antunes poderiam residir em qualquer outro bairro popular.

O Bairro Popular nº 2 – cujo nome de Batismo é Câncio Martins – é um bairro popular como tantos outros no mundo: casas simples, gente descontraída trocando dois dedos de conversa no portão, bares onde a cerveja e o petisco correm soltos, vias largas e estreitas, praças, travessas, cantos e recantos retilinios e despreocupados de lógica urbanística, o motorista aventureiro que se mete pelo bairro sempre retorna ao ponto de partida, ou ao Largo que é sempre ponto de referência.

No comércio local, lojas de roupas, sapatarias, oficinas, mercearias e padarias. No Bairro tem Clube para no fim de semana se reunir o maralhal e se divertir ao som de uma boa música.

Como todo bairro popular, o Bairro Popular nº 2 tem velha fofoqueira, tem briga de marido e mulher, tem repreensão sobre um filho malcriado, tem kandengues jogando bola na rua e meninas pulando ao jogo da corda. Se cada cantinho de chão traz seu traço, o do Bairro Popular é a proximidade com o centro da cidade...

Sendo tão perto do centro da cidade, o Bairro Popular nº2, não poderia deixar de sofrer a influência da cidade. Daí que um garoto nele nascido tem infância duplamente vivida e saboreada: a descontraída e preguiçosa do bairro, e a aguerrida e laboriosa da cidade, onde é necessária certa dose de malícia e esperteza para se viver.

No Bairro Popular nº 2, e na cidade, tudo se adquire à força do trabalho, pois nada sobeja livre na natureza – bastante alterada pelo homem. Na periferia, uma rua com pouco tráfego ou alguma várzea sempre agasalha um campo de futebol.

Os garotos dos musseques periféricos ao Bairro Popular nº 2 prematuramente se põem a ganhar a vida para poder vivê-la: engraxar sapatos, vender doces de ginguba e revistas velhas na calçada; catar papéis, latas, garrafas e fios de cobre para vendê-los ao ferro-velho, além de recados, são operações comerciais que rendem alguns trocados para a garotada ir vivendo.

No Bairro Popular, como em tantos bairros, há tempo de tudo: tempo de coleção de cromos, tempo de jogar à bola , tempo de pião, tempo de passear nas torraites e ver as garinas, tempo da festa de São João... Bonito mesmo é o tempo de empinar o papagaio, pois exige destreza para driblar fios elétricos e vivendas que comprimem o bairro! Ali se aprende de verdade essa nobre e secular arte de rasgar os céus com papagaios multicoloridos.

Não é para espalhar por aí – a Câmara Municipal de Luanda não sabe disto –, mas as ruas do bairro pertencem mesmo aos kandengues, que diambulam de cá para lá, de uma rua para outra, imperando no seu território, onde jogam futebol, brigam, riem, andam de carrinhos de rolamentos, patins, bicicleta; brincam jogos de guerreiros e heróis, cabra-cega, apanhada, salto a corda e macaca. A rua é palco de contrastes onde se vê de tudo: kandengue bom e kandengue ruim, kandengue forte e kandengue covarde, sãos e viciados, atinados e vadios.

Nos finais de tarde, os velhos se acomodam nas varandas e conversam tanto que a rapaziada não bota na cabeça como aguentam ficar parados um vida de tempo assim. Mas o fato é que ali ficam, e se divertem vendo a criançada retornar da escola e os pais regressarem do trabalho... Isso é privilégio de bairro que convive sadiamente e não teme desgraças.

A criançada da rua é feliz. A muitos kandengues a pobreza excita a criatividade e nessa escola se improvisa de tudo: se não tem bola de catchú, a malta se vira com bola de borracha. Cachorro de raça é muito caro? Cada vira-lata bacana a garotada consegue! Brinquedos de marca, qualquer carrinho feito de lata de sardinha serve.

O kart é substituído com vantagem pelo carrinho de rolamentos. Carrinhos de todos os tipos, para levar gente. São de causar inveja aos donos dos carros de verdade, que passam e se admiram. Ali no bairro ainda se veem carrinhos com rolamentos conseguidos no lixo das oficinas mecânicas, e com direção hidráulica à base de arames por baixo do chassi de madeira e ligados ao eixo da direção, e assento com encosto para o piloto feito de cadeira velha sem pernas... Travão? Ah, o travão pode ser de mão, com um pedaço de pau na lateral do carrinho; ou de pé, à base de sola de sapato ou pneu velho pregado ao eixo da direção que, pressionado contra o solo pelos calcanhares, faz o veículo travar cantando o aço dos rolamentos.

Brincadeira velha e gostosa que a tradição arrancou da boca voraz da modernidade, mantendo-a viva em bairros modestos, é disparar pela rua com um pneu velho de bicicleta, ou de automóvel fazendo-o deslizar ágil, equilibrado apenas por uma vareta de gancho na ponta e encaixada ao pneu quase rente ao chão; ou correndo velozmente e tangendo o rasto do pneu com um pedaço de pau, e zigzeguiando postes e pessoas.

E assim, na pobreza inventiva, a garotada vai vivendo sem carrinhos eletrônicos e sem traumas por abstinência de consumo.

2008

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