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23/05/2012

NEM TUDO ERA BONITO

Historia do Irmão Do Vasco Leite  da Rua da Gabela
O saudoso e amigo “puto” Leite. Figura carismática da Escola Comercial Vicente Ferreira. Pequenote, magro, brincalhão, cativante, de sorriso permanente nos lábios, algo trocista, sempre metido em encrencas. Um hiperactivo, como se diz agora. Não havia quem nem gostasse dele.
Frequentou o Colégio dos Maristas. Naquele dia, no recreio, encontra-se na companhia de outros alunos num aceso “tremuno” (jogo de futebol). Alguém remata fortíssimo. O guarda-redes não se mexe. “O esférico” não entra, nem bate na trave. Acerta num padre que ia a passar e que retém a bola. Leite destaca-se do grupo. Dirige-se ao padre e pede-a educadamente. Apresenta desculpas. A meio do sermão, acompanhado de um sorriso sacaninha nos lábios, o padre dá-lhe uma violenta bofetada, saca de um canivete e retalha a bola. Pequenino, franzino, mas de fibra, o puto Leite apanha a primeira pedra que lhe vem à mão e atira à cabeça do padre. É expulso dos Maristas.
O pai toma medidas extremas. Coloca-o no Colégio da Mocidade Portuguesa, na cidade de Sá da Bandeira. È uma instituição de referência para meninos mal comportados. O director, o célebre professor Portugal, é um criativo em métodos vigorosos: muitas reguadas, alunos de joelhos com as mãos por baixo dos mesmos e outros mimos de avançada pedagogia aplicada. O Leite é interno. A Camarata é no 1º andar. Coisa pouca. Desde a primeira noite o Leite sai e entra quando quer. Regressa sempre antes de a aurora começar a despontar. Trepa pelos lençóis que servem de corda. Antes de se deitar, se está nos seus dias e para acabar a noite em grande, ainda despeja água para cima de alguns colegas que estão a dormir. Encrencas, sessões de pugilato. Quinze dias depois é expulso novamente.
Vem para Luanda, para a Vicente Ferreira. Faça-se aqui um esclarecimento: o puto Leite é um bom miúdo, capaz de tirar a camisa para ajudar um amigo, um pobre ou seja lá quem for. Se briga muito é porque é muito brincalhão, amigo de pregar partidas e os outros, quando olham para ele, vêem nele uma presa fácil. Enganam-se, é um duro. Chegou a treinar halterofilismo para ganhar alguma massa corporal e mais músculos para melhor enfrentar os matulões. Sem sucesso, ficou sempre franzino. É, imagine-se, é um aluno acima da média, mas pouco aplicado. Não precisa de estudar para ter boas notas...
Já fez o curso comercial e a Secção Preparatória. Frequenta o Instituto Comercial quando é chamado para a tropa.
Faz o Curso de Sargentos Milicianos. Foi, entretanto, seleccionado para os Comandos, sendo um dos melhores classificados no curso. Em 1968 a coluna militar em que seguia é obrigada a parar numa picada estreita devido a uma manada de gado ali estacionada. É uma emboscada. Uma granada estoura a poucos metros da sua cabeça. Sobrevive, ainda, seis horas antes de fechar para sempre os seus lindos olhos azuis.
Para ti, puto Leite, os nossos agradecimentos pelos momentos únicos que nos proporcionaste e pela sorte que tive em conviver contigo. Vê lá se agora descansas em paz.

História do Eduardo da rua de Vila Viçosa


Dia de Natal do ano de 1968. Oito horas. Manhã linda de Verão. Eduardo, como muitos outros miúdos – era o costume  já andava na rua a mostrar os brinquedos que recebera do Pai Natal. Uma impressionante frota de três carros “Dinky Toys”, a e um espectacular “Corgi Toys”. O que mais chamava a atenção era o “charuto” de corridas, um Ferrari com o número 36.

No passeio negro, já se traçou a giz uma pista de corridas, com curvas apertadas, rectas valentes, boxes, meta e outras minudências. A corrida já vai na terceira volta e o Ferrari lidera confortavelmente. A prova é interrompida pela aparição súbita do Toninho, rapaz coradinho, de óculos de lentes muito grossas. Ostenta uma reluzente espingarda de pressão de ar. Nem queriam acreditar: uma “Dyana” novinha, calibre 22, que o tio do puto marcial tinha trazido da metrópole. Foi o desânimo geral entre os amantes da velocidade. Os carros de corrida passaram de imediato a serem desinteressantes. Até o Ferrari encolheu do nº. 36 para o nº. 30...

Fica logo combinado, para o dia seguinte, uma grandiosa caçada aos pássaros. Local escolhido: o Lagoa do Roldão que é frondosa, tem passarada com fartura, sardões e piteiras com figos da Índia saborosos. E que picam a valer.
A manhã está linda e a coluna paramilitar põe-se em movimento: três bicicletas para transportar 5 caçadores, quatro fisgas, uma espingarda de pressão de ar e uma arma secreta...

O grupo divide-se. Três fisgas para um lado; o Eduardo e o dono da espingarda para outro. Já lá vai uma latinha de chumbos e nenhuma peça de caça. «É pá, sabes, não estou habituado a isto», diz o Toninho. A meio da segunda latinha, 150 chumbos falhados, já havia certezas: «é que durante a viagem de barco o cano encurvou. Foram os apertos, sabes, não sabes?». Um Rabo de Junco, que descansava tranquilamente na copa de uma árvore, ouviu e riu-se...
Quando a coisa já ia em “a mira deve estar desafinada” o Eduardo lança mão da arma secreta. Sobe ao extremo de uma árvore e deixa lá dois pauzinhos envolvidos em visgo, para apanhar passarinhos vivos. Coloca-se de atalaia no outro extremo da árvore...

Cá em baixo o Toninho está vigilante. Vê um passarito a poisar na árvore. Está ali mesmo, virado para ele. Leva a arma à cara, ajeita os óculos. Faz pontaria. Dispara. Ouve-se, ui. O Ed cai da  árvore que nem um tordo, com um chumbo na canela. Aterra em cima de uma mancha viçosa de piteiras carregadinhas de figos.

A mãe dos rapazes está na cozinha, nos seus afazeres. O único som que se ouve em casa é a voz do seu filho mais novo que, cadenciadamente, vai contando: 745...746...747. A senhora já não pode ouvir mais aquela lenga-lenga. Há horas que ouve aquilo. «E começou no número 1», murmura. Limpa as mãos, alisa o avental e dirige-se para o quarto dos filhos.
Abre a porta. De calções arreados até aos calcanhares e sem camisa está o Eduardo  no divã. De rabo virado para o ar. Rosadinho. Sentado no banquinho ao lado da cama, está o irmão. Tem uma pinça numa das mãos e um prato na outra. Sempre que arranca um espinho de figo da Índia vai contando em voz alto e deposita-o no prato. Vai agora no 752 e está, ainda, a meio das costas. Não chegou sequer às nádegas, a parte mais confrangedora. As pernitas também têm que se lhe diga. «Ò mãe, o Eduardo diz que se lhe tirar os “picos” todos leva-me ao Baleizão para comer uma taça de gelado das grandes. Mas são tantos...»
adaptado da ideia original do Paiva
1973

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