Após o 25 de Abril de 1974, o País sofreu profundas alterações estruturais nas suas componentes Políticas, Sociais e Econômicas.
Muitos dos Portugueses que até ai viviam de um modo acomodado, aproveitaram a Revolução dos Cravos para darem largas à sua, em alguns casos, abusada liberdade, e de uma forma descontrolada procederam a excessos vários como foram as ocupações “selvagens” de propriedades rurais, fábricas, instituições bancarias, órgãos de comunicação social e praticamente tudo quanto no entendimento dos “cabecilhas” dos movimentos revolucionários, eram mais que muitos, poderia dar algum lucro direto e ao mesmo tempo a uma nova classe política em formação e que necessitava de status social para se afirmar na sociedade e por outro uma nova classe; os chamados novos ricos.
O ambiente em Lisboa era muito diferente daquele a que estava habituado na calmaria de Luanda por onde me movia: a coisa era mais urbana, mais nervosa quase me sentia numa grande Capital.
Nessa época dourada ou se era fascista, ou anti-fascista e portanto assumia-se como democrata todo aquele que batia forte no peito e gritava “eu nunca fui do antigo regime”. Era o antes e o depois de 25 de Abril de 1974, mas o mais estranho era que quase ninguém assumia ter sido apoiante do regime deposto, tendo surgido assim milhares de democratas, anti-fascistas, de aviário, auto-fabricadas da noite para o dia, e que surgia de tudo quanto era canto.
Saber perdoar é realmente uma grande virtude dos homens, ou de alguns homens, mas esquecer não deve ser uma regra para ser seguida, pois quem um dia ajudou a lançar nas masmorras do regime, homens e mulheres, só pelo simples facto de pensarem diferente, nunca pode ser alguém confiável, passem os anos que possam vir a passar sobre os acontecimentos.
Para Portugal Continental ficou reservada a parte de leão de acolher dezenas de milhares de portugueses espoliados e escorraçados das antigas colônias, quantos deles nascidos já em solo de Angola, Timor, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e que assim eram banidos das suas terras e recambiados para Portugal, na sua maioria com uma mão á frente e outra atrás, deixando para o passado das suas vidas uma memória de realizações e muitos sonhos não concretizados, com uma vida perfeitamente alterada e destruída de um dia para o outro.
O Portugal de 1975 não tinha estruturas nem condições políticas, Sociais, Geográficas e Econômicas entre outras para conseguir com o mínimo de condições absorver todos aqueles milhares de Portugueses, a quem pomposamente desde logo batizaram de “retornados”, bem como, muitos militares que passaram à disponibilidade.
Todo o país sofreu profundas transformações e Lisboa não foi exceção, na receção de muitas centenas de “novos” portugueses que vinham tentar adaptar-se ás condições do continente e por seu lado o próprio continente teve que se adaptar a esta nova realidade social e econômica.
Esta nova formula de vida que transformou Portugal de um dia para o outro num centro de acolhimento de desalojados que chegavam carregados de novas culturas e formas de vida, e obviamente como seria também de esperar, de muitos fatores nefastos para a sociedade, nomeadamente e em especial, a toxicodependência, até então praticamente inexistente em Portugal e que num ápice explodiu em termos de qualidade e quantidade.
Da simples “Maconha - Liamba”, passaram para outras ervas, para o L.S.D. para os ácidos, foi a explosão de uma geração para uma nova realidade em principio popularmente aplicada em termos culturais, mas que por detrás escondia os muitos jovens que fumavam Maconha - Liamba, tomavam os comprimidos de ácidos variados, etc, etc, e a escalada foi rápida e silenciosa, com efeitos terríficos e incontabilizáveis em termos de perdas e custos reais para o País, até aos dias de hoje, pois esta escalada nunca mais teve fim.
De forma alguma se pode acusar os alegados “retornados” pelo facto de que Portugal é um País tão igual a todos os outros em termos de toxicodependência, pode-se isso sim ter a certeza de que apenas diminuíram o tempo de surgimento e concretização desse processo de uma forma determinante.
Aquela geração, saída daqueles históricos acontecimentos, pode bem apelidar-se para alguns, sem ofender ninguém, de “Geração da Liamba e dos Ácidos!”
Enquanto em Luanda se começavam timidamente a fumar uns charros de erva; ( liamba ), nome Angolano, pois com a descolonização alguns dos retornados das províncias ultramarinas trouxeram como carga nos caixotes alguns quilos do vegetal, num país onde tinham chegado de mãos a abanar. E, de repente, a calmaria de Lisboa foi sacudida por aquela substância ilegal (cujo nome, unificador e botânico, é Cannabis sativa), que inundou a cidade em tal quantidade que nos anos entre 1975 e 1976 era mais rápido comprar erva em alguns cafés de Lisboa principalmente no Rossio do que um maço de cigarros!
Em Lisboa encontrei um ambiente diferente, não faltava o sexo. Recordo até hoje uma amiga, que estudava com uma prima minha, que na melhor oportunidade convidou o Fernando para uma ida a sua casa, que redundou numa tarde de estudos anatômicos e corporais, que culminou com a grande satisfação da sua vida, ou seja ter-se tornado mulher.
Nessa altura o Fernando teria 25 anos e a jovem adolescente 16 ou 17 e o Fernando não escondia que ficou com o ego de “macho” elevado, mas por outro lado ficou deveras constrangido, assustado mesmo, com o ocorrido, e ela maravilhada, diria mesmo extasiada como tudo tida decorrido, na verdade nessa época o Fernando já tinha tido aquelas maravilhosas lições da Espanhola, e portanto achava-se o homem mais experiente e conhecedor dos segredos de alcova do mundo. Ela não se conteve e contou para algumas amigas, tendo como resultado imediato um grande assédio por parte de outra sua colega que, ao seu contacto para esse fim, ele recusou, por manifesto medo dos resultados posteriores.
Anos mais tarde em 1986 aconteceu um encontro casual com essa pessoa, e ela acabou por me confessar que tinha ficado curiosa e frustrada, ia-se casar e que para ela, só o facto de agora poder concretizar esse seu sonho a podia de alguma forma compensar daqueles dias de tristeza passados no ano de 1976.
Lá estava o rock’n’roll (com a música brasileira e o jazz embutidos), mas, no que diz respeito a drogas, o panorama era mais pesado. Nalgumas garagens e arrumos do rés-do-chão das entradas de prédios degradados, havia gente que tratava por tu a coca e a heroína e, para grande arrepio meu – a quem as agulhas davam um terror gelado – não apenas fumada, mas injetada. E, com angústia de permeio (nomeadamente nalguns membros da família), havia depois os amigos de Angola completamente agarrados àquilo na bela idade da Juventude.
Em 1976, quando isto se passou, eu tinha 21 anos de idade, e esses foram os meus primeiros contactos com quem estava agarrado á droga ( Zé Huila que era empregado bancário em Sá da Bandeira e deambulava pelo Rossio embrulhado num cobertor e já só se alimentava com um bolo de arroz esfarelado e metido dentro de uma garrafa de coca cola, já falecido no ano de 1981, eu e mais amigos conversávamos sobre isso, e se aquele caminho seria um caminho tão legítimo como qualquer outro para se chegar à idade adulta, à sabedoria, sabe-se lá onde... Nem nós sabíamos bem por onde ir nem de que era feito o mundo. O Toguta que diambulava ali nas tascas da Rua do Arco Bandeira, sempre pedrado, uma vez vi-o tão pedrado que comia uma maçã, bebia uma cerveja, dormia em pé e arrumava carros, e sempre que tinha 500 Escudos até de táxi ia a meia Laranja no casal Ventoso comprar a dose, faleceu em 2006.
Os metralhas que arranjaram maneira de vender e consumir, eram três irmãos e um deles matou o próprio irmão à facada já nos idos anos de 1983, os outros dois faleceram em 1985, nesse ano também faleceram os irmãos o Tico e o Teco, filhos de uma ilustre família vinda de Angola que moravam no Estoril.
Disso tudo fizeram parte os excessos (de drogas leves e duras e álcool), avilo da Vila Alice, tivesse os defeitos que tivesse, o Tó Zé ( c…. de égua ), esteve no Canadá, voltou em 2009, as impurezas das drogas duras, muitas vezes misturadas com outros produtos, sobretudo quando injetadas, entopem o filtro que é o fígado. O facto de se usarem agulhas, muitas vezes em condições de esterilização duvidosa e partilhadas com outros, atrai o vírus da hepatite C, doença que deixa marcas permanentes no fígado e o torna num tecido cicatricial que vai perdendo a habilidade de filtrar seja o que for. Ah! e o álcool, a tequila – por exemplo, faz um efeito sobreponível ao da hepatite C: transforma um organismo vivo e vital para nos livrar das impurezas que o nosso canastro produz num courato sem préstimo, parecendo uma isca requentada de roulotte de porta do Campo Pequeno. Por todos estes excessos, que se potenciam uns aos outros, o fígado do Tó Zé deu o berro, é hospitalizado em 2010, e de um modo tão definitivo que tiveram de fazer uma cirurgia e trocar o fígado por outro, mas houve rejeição e faleceu.
No caso concreto da cidade de Lisboa, na segunda parte dos anos 70 as escolas tornaram-se um alvo apetecível para espalhar uma cultura de alegada modernidade, que vinha acompanhada de novos ritmos musicas, novas modas de vestuário, uma auto-colonização a nível da linguagem, a que a memória desses tempos não mata expressões como: Maningue, Bué, Avilo, Yá meu, Fixe, Bunda, Frique, Ok; e uma abertura a novas realidades de convívio social com a importância da “curtição” como polo determinante da sociabilização entre os jovens, quem não se adaptava a estas novas regras de convivência e conduta adotadas pela maioria era logo designado como “careta!”
Nesta época tornou-se perfeitamente normal, “curtir”, ou seja namoriscar com várias garotas ao mesmo tempo, e em especial as mais atualizadas/modernizadas, já iniciavam a utilização dos meios anti-concetivos para não existirem novidades, por outro lado alteraram-se profundamente os hábitos de decisão e muitas vezes as jovens decidiam por sua livre iniciativa levar um relacionamento afetivo mais além em termos de liberdades, consumando o ato com quem elas decidiam ser o “macho” mais adequado para esse importante passo nas suas vidas, e quantas vezes nós os potenciais “Machos Latinos” ficávamos como que encavacados com alguns convites mais ousados, que a nossa mentalidade da época mandava ter prudência para evitar novidades indesejáveis de formação de famílias de um modo precoce.
Com a chegada dos jovens das ex-colonias chegaram também ás escolas os novos hábitos do tabaco e da bebida com fartura.
Na bebida misturavam-se refrigerantes para atenuar as largas quantidades de álcool, especialmente encontradas no vodka que se diluía em sumo de laranja em quantidades generosas, de acordo com os resultados a obter, desde que fosse ingerido com fartura.
No tabaco misturavam a “maconha” de um modo que só mesmo o cheiro intenso e de alguma forma adocicado deixava transparecer a preparação para uma passa, que corria de mão em mão dos apreciadores.
Um largo grupo de amigos da minha geração derrapou nesta “nefasta” nova realidade sócio-cultural, e se alguns conseguiram de alguma forma acautelar o seu futuro e jogar com a realidade, outros infelizmente entraram nesse túnel escuro e húmido de onde nunca mais conseguiram sair, continuando a viver muitos deles dentro desse pesadelo como foi o caso do já citado Zé Huila, um autentico farrapo humano, que vivia “vegetava” de esmolas e deambulava ali no Rossio só com um cobertor a servir de roupa.
Outros companheiros de juventude, conseguiram gozar a vida à sua maneira e manter posteriormente uma distância considerável desse sub-mundo, com uma postura correta e normal perante a sociedade, tendo vivido esse período pós vivencia atribulada de um modo normalíssimo.
Felizmente que a maioria dos nossos amigos, nem sequer chegou a entrar por esses caminhos, da descoberta das luzes brilhantes e vindas do além diretamente para a imaginação de cada um, dos fumos que davam “Bué de pica”, das passas que deixavam entorpecidos os músculos e os sentimentos, e os únicos vícios que realmente nos levaram a andar muitos dias e noites nas “borgas” foram a loucura pelo futebol, pelas garotas, e por uns bons petiscos acompanhados por umas boas canecas de cerveja bem fresca.
Nenhum de nós pode esquecer que de qualquer forma pertencemos a esta geração construída debaixo dos efeitos da Revolução dos Cravos e da Liamba que chegou em quantidades industriais trazidas da África Colonialista, e que tudo isto nos ajudou a formar e nos tornou nos homens que hoje somos e que quando olhamos para trás realmente como que se nos torna o passado florescente aos nossos olhos, mas pelas melhores razões, de saudades de uma infância e juventude muito bem vivida, apesar de todas as condicionantes que circulavam em nosso redor.
1976
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