Tanta coisa acontece no decorrer da nossa vida. Se as não escrevemos, esquecemo-las...e algumas são até dignas de reparo, de exemplo e semelhantes ás de outros.
Há dias fiz uma viagem de avião e junto a mim, vinha um cavalheiro que me disse que não deveríamos escrever, fazer notas, do que se passa connosco, porque desse modo estamos a trair o cérebro, ou seja a fazer com que ele (o cérebro) se acomode e não faça o seu trabalho que é recordar, puxar pela memória...e um cérebro não estimulado, apaga-se.
Pessoalmente não concordo muito com esta ideia, já que no presente, podemos estar em plena função, capazes...mas, como o amanhã é desconhecido... podemos mesmo, precisar da ajuda das memórias escritas para voltarmos atrás, ás situações que nos parecem ter sido boas.
Decidi portanto, registar o que tem passado por mim, nos anos que já vivi, acreditando que assim também faço exercício mental que me ajuda a sobreviver.
A MARIA
A Maria, nasceu da mesma forma que toda a gente. Mas pensando que alguém tenha histórias iguais, vou deixando aqui registado pontos que acho interessantes.
Quando Anselmo, o irmão da Maria, tinha 6 anos de idade...o pai começou a pensar na menina para lhe fazer companhia.
Como estava destacado na cidade do Lobito, fazendo serviço para o Ministério da Justiça, onde trabalhava...e como Luanda era sua terra e morada inicial...ao chegar a altura do nascimento da Maria, decidiu que a sua mulher iria ter a
criança, lá na sua cidade, que no Lobito, nem pensar!.
Assim foi, mas a D. Conceição, também não estava pelos ajustes em ter o filho sozinha, sem marido e sem a mãe por perto e assim decidiu que o parto seria feito
em Benguela onde nascera e vivia a sua mãe.
Fez-se o parto em casa, nasceu a Maria, mas o seu registo, por exigência do pai, teve que ser feito em Luanda, como se lá tivesse nascido.
Com toda esta situação, o tempo previsto para o registo obrigatório, claro, foi ultrapassado e então a data foi também diferente da verdadeira.
No Bilhete de Identidade da Maria, há a localidade e a data de nascimento, completamente erradas. Mas, isso nunca a incomodou muito, já que acabava por ser natural da capital de Angola e era um mês mais nova.
Depois, foi viver para Luanda, quando estava para fazer 6 anos de idade.
Sendo ali criada, sempre considerou ser essa a sua terra, mas veio o 25 de Abril, com toda a história que os mais velhos conhecem na pele e os mais novos, pelo que lhes foi ensinado nas escolas e conforme a tendência politica de quem explica...e
passados alguns anos, houve necessidade de emigrar e aí vai a Maria com família já constituída, para a Austrália.
Hoje, pergunta muita vez:
Fui "fabricada" no Lobito, parida em Benguela, registada em Luanda, criada em Angola e vivo na Austrália...
Afinal de onde sou?
ESCOLA DO MEU TEMPO
Antes de continuar a usar este espaço para as memórias da minha vida, quero informar que os episódios são verídicos, mas os nomes dos participantes não. Porquê?
Porque alguns dos casos não me dizem respeito directamente e então, ao falar de outros, devo respeitar a identidade.
Assim, qualquer nome indicado, não é o correspondente e portanto não se refere a alguém que possivelmente se identifique com a história.
O Quim, teve uma infância atribulada. Os pais separaram-se quando ainda era um menino e asneira das asneiras, o juiz que tratou do litigio, entregou dois dos filhos ao pai e outros dois à mãe. Já não bastava uma separação, ele foi também separado dos irmãos.
Como lhe calhou ficar com o pai e este não tinha condições para cuidar dele, colocou um filho na casa dum familiar e o outro num colégio católico, ou melhor dizendo... de padres.
Sofreu toda a espécie de injúrias, desde verbais a físicas. Mostra ainda hoje, com mais de 60 anos de idade, uma mão com um osso deslocado, fora do lugar...pela brutalidade de um dos padres que lhe deu com uma régua grossa e pesada, apenas porque ele fez um barulhinho com os dedos no tampo da carteira.
Também foi assediado sexualmente, embora sendo já um rapazote, se tenha conseguido desviar da situação. Os pais lá o visitavam, mas raramente.
Passaram-se pelo menos 8 anos e quando fez os 18, pode então alistar-se na Força Aérea e saiu para lá, como voluntário... continuando a partir daí o seu sistema de vida.
Com tanto desgosto, pancada dum lado e do outro, o Quim tornou-se um homem amargo. Muito difícil lhe foi conservar alguns amigos que ainda conseguia fazer.
Para se casar, precisou fazê-lo por procuração (que naquele tempo era assim.) Não conhecia a noiva, mas para ele valeu a pena, não se podendo dizer o mesmo em relação a ela, uma santa que nunca se lamentou, mas que todos os que os conheciam, sabiam a dificuldade que tinha em lidar com pessoa tão maltratada pela vida e que não soube seguir por outro caminho, senão aquele que aprendeu e lhe impuseram.
Lamento muito por ele, já que nem os próprios filhos e outros descendentes se importam muito com ele. Não conseguiu fazer amor à sua volta.
GUSTAVO
Outro caso que conheço...é o do Gustavo. Ele e a Zita, irmã mais nova, todos os natais pediam ao menino Jesus, em suas cartas, que lhe desse a ele a bicicleta que tanto ansiava. Ela pedia uma boneca linda de louça.
Estes pedidos, eram feitos na escola e incentivados pelos professores. Incutiam nas crianças a esperança de virem a ter um presente lindo e a seu gosto, como afinal, parecia acontecer com os filhos dos senhores ricos. Claro que estes tinham o que pediam, já que os próprios pais se encarregavam de os satisfazer.. O Menino Jesus ficava por algum tempo amaldiçoado pelo Gustavo e irmã, que não compreendiam porque não eram atendidos e só conseguiam receber algum brinquedo já usado por outros.
Todavia, à escola não queriam faltar, mesmo odiando-a. É que na hora do recreio, sempre vinha um quarto de pão grande com uma meia dúzia de figos e aquilo era muitas das vezes a única comida do dia. Aqui, as coisas não são muito diferentes das de hoje, infelizmente.
Um dia, um professor ofereceu-lhe uma lousa. Coisa que ele nunca tinha visto e ficou emocionado por ter algo seu e onde podia escrever o que quizesse...apagar e voltar a escrever.
Ao chegar a casa, lembrou-se de lavá-la muito e muito, para que parecesse novinha. O resultado foi abrir uma racha. Foi o suficiente para o fazer sofrer um desgosto que só ele mesmo é capaz de descrever e não permitir que dormisse sossegado, como devia dormir uma criança que é amada.
Ao chegar à escola, o professor ao descobrir... com as costas da mão deu-lhe uma tal bofetada que o pobrezinho deu duas voltas sobre si mesmo e se estatelou no chão.
Eu próprio me recordo de algumas vezes, por coisas simples, como por exemplo não saber.
a tabuada...ir parar de joelhos ao tapete de arame que havia à entrada da classe.
Coisas incríveis que parecem até ter acontecido num mundo sem qualquer civilização.
Estas histórias recebias via mail
Escrito no Mazungue por Sombra
2012
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