Numa das manhãs de Luanda, cheguei À Represental, Lda. para mais um dia de trabalho que prometia ser igual a tantos outros, pensava eu. Mas não foi… A certa altura apareceu a Dona Maria de Lourdes, (o marido era oficial da Força Aérea Portuguesa), secretária do meu patrão, com um rádio na mão. Seriam entre as 9 e 9 h 30 da manhã, em Luanda, por isso menos uma hora em Lisboa. Entrou como um vulcão e dirigiu-se ao gabinete do patrão. Pelo que pudemos perceber, a rádio estava a noticiar que as comunicações com Portugal estavam cortadas, porque se tinha dado uma revolução. Confesso que nem percebi o que isso significava, na altura, eu não percebia o que significava a revolução, nunca ouvira falar tal coisa a não ser nas minhas aulas de História. Terminado o dia de trabalho, quando voltei para casa, perguntei ao meu pai o que significava, e ele lá me contou.
Segundo o meu pai os militares tinham-se revoltado e a Pide estava a resistir, pelo que podia haver mortes. Fiquei convencido que havia guerra em Lisboa, logo em Lisboa, onde se encontrava a restante familia, e ainda com as saudades que tinha deles, ainda me fazia sofrer mais, que dor eu tinha no meu peito.. Mal sabia eu que o pior estava para acontecer e reservado para nós, os que vivíamos fora da Metrópole. Acho que ninguém que não tenha passado pelo que nos estava reservado, pode sequer imaginar o terror dos tempos que se seguiram á bendita revolução.
Nós que, até então, trabalhávamos, estudávamos, vivíamos uma vida simples, sem sobressaltos, e em paz, vimos tudo alterado num ápice. Um mês, nem tanto passado sobre o dia da revolução e o medo passou a estar sempre presente, para nós, os de pele branca. De todo o tempo que tinha passado em Luanda. Não era muito diferente do que se passava na metrópole, embora me parecesse que se vivia melhor em Luanda. Claro que havia gente pobre, claro que havia gente que vivia mal, mas no geral parecia-me que as coisas lá eram bem melhores que por cá. Haverá quem diga que havia mais negros que brancos a viver mal, o que é verdade, porque em Angola os negros eram em muito maior número.
Mas o país era rico e isso permitia que todos vivessem de modo mais ou menos aceitável. A verdade é que eu nunca tinha feito mal a negro algum, nem nunca tinha visto ninguém a fazer mal, também. Trabalhava e estudava rodeado de negros e negras, e pelo que podia ver, tinham mais ou menos o mesmo nível de vida que eu tinha, vestiam o que eu vestia, comiam o que eu comia, a única diferença era a cor da pele.
Nunca ninguém cá contou o que passou a quem estava em Angola, depois o 25 de Abril, até à hora de conseguir lugar num avião, ou num barco, para voltar ao nosso querido Portugal. Eu, não tive grandes problemas em arranjar lugar num avião assim como para a minha família, ( eu Carmitas e Melita ). Mas o desfazer de projectos que tinha em mente para o futuro isso foi tudo gorado, para que sofri eu tanto. Mas chegada cá a verdade é que não tinha a minha família desesperada á minha espera. Pior foi para aqueles que lá tinham nascido há gerações e gerações, que só por serem brancos tiveram de perder tudo e vir para um país que lhe era estranho e hostil. Foram de lá corridos sobre a pena de serem mortos se não o fizessem. Quando cá chegaram foram maltratados e intitulados de “retornados”, exploradores de pretos. Não houve forma mais cruel de tratar os espoliados, expulsos da sua terra natal por serem brancos, indesejados na metrópole por serem retornados . Quem era rico lá, conseguiu não deixar muita coisa e passar para a África do Sul ou Brasil e outros países vizinhos, mas quem vivia do seu salário, sem posses para fugir, suportou toda a malvadez de vingança que se lá passou . Os senhores do capital trouxeram para cá milhões em ouro e diamantes e cá continuaram com as suas fortunas, mas o povo, como sempre, foi o sofredor. Os senhores do 25 de Abril condenaram um povo que, por opção dos seus antepassados, vivia naquela terra. Não houve condescendência ou tolerância, apenas vingança e mais vingança contra todos os que tinham a pele branca.
Com a revolução em Lisboa, as tropas portuguesas em Angola, perderam a seautoridade total assim lhes foi ordenado e eles assim cumpriam, era como nós não fossemos Portugueses nada faziam para nos proteger. Era como se a atitude anti-guerra, motivação originária da rebelião militar, tivesse assumido a preponderância sobre tudo o resto, deixando quem estava em Angola, à mercê de toda a espécie de malfeitorias. Não havia quem nos protegesse. Cada saída era um imponderável. Foram incontáveis os ataques, os roubos, as agressões, as violações, as mortes, sem que militares ou polícias fizessem alguma coisa. Assisti a coisas que davam um filme de terror, noites e noites de bombardeamentos sem fim…
Ao que se constava, as ordens que os militares e a polícia tinham, a mando de Rosa Coutinho e similares, eram apenas para virem embora e o mais depressa possível, deixar tudo e regressar a Lisboa. Ainda lembro, como eu cheio de angústia via as nossas tropas a passar á nossa porta a caminho do local de embarque. Era tão aterrador assistir a essa situação, pareciam uns covardes a fugir e a abandonar o povo ou povo, que até então defenderam.
Deveriam ficar até o último Português estar a salvo, deviam defender-nos protegendo-nos e tentar impedir que nada de mal nos acontecesse, tenho a certeza que seria assim num país civilizado, e que tivesse respeito e patriotismo, mas sabem lá o que é isso os homens do 25 de Abril, só ódio e revolta e raiva. Não tenho qualquer respeito pelos que ordenaram essa crueldade.
Muitos não conseguiram trazer nada a não ser, trazer 5.000$00, trocados por 5.000 Angolares, tudo o resto, que tinham economizado para puder, vir cá passar férias, teve de lá ficar, muitos com ordens de transferência para bancos aqui na cidade de Lisboa, mas ainda hoje estão à espera, não apareceu. E já lá vão valentes anos.
Dois dos Nossos Carrascos
1974
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