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04/06/2012

LUANDA SAUDADES

De Luanda sei vinte anos que vivi. Sei as manhãs, sei as tardes, sei o som dos grilos na noite e dos cães ladrando, sei o gosto das mangas maduras em que me lambuzava num desgoverno que afectava a minha barriga, sei das estrelas e dos contos das sereias na cacimba do bairro Indígena, sei dos pescadores da Ilha, fumando cachimbo, envoltos em panos, sei da Joana Maluca, sei da Velha Mariquinhas, antiga escrava em Portugal, feiticeira com mais de 100 anos, sei das meninas do Bairro Operário e da Cagalhoça, sei do carro do fumo ( tifa ) e  dos garotos correndo numa alegria histérica e sempre renovada, sei da sirene das ambulâncias passando para o Hospital de S. Paulo.
Sei do Padre Costa Pereira em que as meninas confessavam sempre os mesmos pecados e ele contava a história do Pinóquio, sei do jogo do garrafão, da minha mãe dá licença. Brincando na serra enquanto o lobo não vem, o que é que o lobo está a fazer?... ou, minha mãe dá-me fogo.
De Luanda sei as ruas do Bairro Popular  a serem alcatroadas, brincar nas manilhas e perder as sandálias, andar de  bicicleta, sei do Liceu Feminino,  onde ia ver as garinas na entrada e saida das aulas das professoras Maria de Jesus Costa, da Sandy Show, do Saratoga e da Gabriela, dos jogos de ringue, na cerca, ou as aulas de Canto Coral,prof Leitão muito gordo, dos mata fomes comidos nos intervalos e das missas na Igreja de Santa Ana,  Sei da Mocidade Portuguesa e do Hino...Lá vamos cantando e rindo...De Luanda sei a praia das Palmeirinhas, D. Amélia, ou na Ilha, a Floresta.  Sei das idas ao porto esperar pessoas idas de Portugal. E comprar revistas proibidas,  Sei das procissões com a Nossa Senhora de Fátima. Sei do Chá das Seis e do Cazumbi
Dos jogos de futebol nos Coqueiros, e no São Paulo, do hoquei em patins, do basquetebol e do campeão Vila Clotilde. Sei da febre amarela e da cólera e do pânico para apanhar a vacina. Sei dos Santos tapados de roxo na semana da Páscoa, das idas ao cemitério Santa Ana no dia 1 e 2 de Novembro e da rádio passando música sacra. Sei dos parodiantes de Lisboa à hora de almoço e das radionovelas. Sei do filme do Tony de Matos que passou no Império, o Destino marca a hora. Da Marisol, do Joselito e do Cantinflas.
Sei das salsichas quando apareceram em lata, e da margarina Vaqueiro também. Sei de Energetic para pôr no leite e de cêcemel. Sei de matete que se dava às crianças, de doce de mamão, dos figos selvagens, das gajajas ácidas e das pitangas, do gengibre e da cola, quando as quitandeiras estendiam as quindas e vendiam - eh peixié peixié...Dos homens que vendiam pelas portas, queijos frescos numas caixas metalizadas, dos pirolitos às cores metidos nos suportes de madeira com furinhos e andares.
Do Sr. Torrão, dizendo é caramelo torrão de Alicante, mete na boca, derrete num instante... Dos papagaios nos céus, dos primeiros helicópteros. Da colunas militares e dos tropas vindo do mato. Dos camiões de contratados para trabalharem no mato. Da carroça dos cães e do meu ódio pelos homens cada vez que levavam um cão meu na carroça. Da roupa branca fervendo na celha e corando nos coradores....Dos cipaios ao domingo passando junto de mim quando eu ia chamar o meu pai para matabichar em nossa casa. Dos engraxadores, criaturinhas pequeninas com a caixa às costas. Das madrugadas ouvindo o assobio dos varredores, na rua. Dos bandos de pássaros no céu ao sábado à tarde e dos miúdos gritando e dizendo que era um casamento. Dos carros de rolamentos.
Do Carnaval. Do Roberto Carlos, das fotonovelas e dos livros da Corim Tellado. Dos brindes que saiam no detergente "Extra " e nas tampas da Coca-cola. Os cromos do futebol. Do Alex cantando pelos cinemas em espectáculos de encantar as jovens. Dos cigarros "Baía " ,dos negritos avulsos. Dos bolos da Royal e das empadas, com ovo e azeitonas. Dos pregos no prato.  Dos ovos estrelados em azeite e das caldeiradas de cabrito. Dos rebuçados de mentol que o meu pai punha no bolso quando saíamos para passear.
Dos baleizeiros com os seus carrinhos que enganávamos com moedas portuguesas, dos concursos de montras na baixa. Do Santos Quipexe, chefe de posto que passeava na sua mota com um lugar de lado, no Simão Toco, no conjunto os Jovens do Prenda, ou os Cunhas. Do Minguito cantando -Ai este tango este tango da minha vida ..na Voz de Angola e no programa que dava aos domingos.

Da Lucília Pita Grós Dias, locutora de fama que fazia o Rádio Magazine da Mulher e logo a seguir o Mais Alto e mais Além, para os tropas. Fomentava a rivalidade entre benfiquistas e sportinguistas e quando o sporting ganhava punha - Vivó Sporting...De Luanda sei as barrocas do Miramar e o Eixo Viário, as Amarelas, sei a Cuca e a Samba. A estrada de Catete, a Vila Alice,Vila Clotilde, Bairro Popular. A Liga Africana. Sei os baleizões de copinhos às cores e colherzinhas, tudo embrulhado em papel. Sei os bolos de banana e de ananás, a paracuca  
Sei as santolas e os caranguejos de Moçamedes.As maçarocas, o algodão da Funda para Catete, plantado junto à estrada. Sei as caçadas de pacaças e veados. Sei a miss Portugal - Riquita. E os seus calções cor de vinho, à chegada a Luanda vitoriosa. Sei Ouro negro e o seu Curicutela... De Luanda sei os desfiles militares em cada 10 de Junho, o dia da Raça, na Marginal. Sei as injecções contra o tétano depois de me cortar em cacos de garrafa, por andar descalço no quintal ou na rua a brincar. Sei braço partido do meu irmão Nando por cair da camioneta do sr. Acácio  abaixo.
De Luanda sei as saias plissadas. A goma nos saiotes, e as mini saias.  Sei as boleias para a praia. A primeira namorada. O primeiro beijo no Preventório Infantil de Luanda. Na praia do Sol, onde aprendi a nadar, dos Maristas, na estrada de Catete, onde jogava a bola. Os sonhos. A Igreja de Santa Ana onde se  abençoava um futuro casamento. Ir à Saratoga na Baixa. Os primeiros pubs. Os cafés e pastelarias. Os bolos da suissa, e os rissóis da Versalhes. De Luanda sei " O Jumbo ", o Autódromo. A Filda. As fogueiras e os balões que se elevavam no ar e na noite, nos Santos Populares.
De Luanda sei as mornas de Cabo Verde, o criolo e a palavra lindíssima que quer dizer meu amor- Nha Cretcheu- De Luanda sei a Alegria. A Esperança. Sei a Amizade, o Respeito e a Humildade. A Compaixão. Sei o Amor... De Luanda sei o sofrimento, a morte, o racismo, o ódio. De Luanda sei a partida, a perda...
De Luanda sei tudo o que fui e o que sou. Pareço saber de Angola. Apenas sei de Luanda, mas uma terra é feita de coisas como estas e todas as terras são parecidas se as suas gentes forem autênticas. O pouco que sei é da participação. É da leitura. É da intuição. É porque quis saber. Porque quis viver.Sei de Luanda dos meus vividos vinte anos.
BANGA ZÉ-adaptado dum texto que recebi

1975

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