O Bairro Operário, enquanto musseque emblemático de Luanda, tem a sua história intrinsecamente ligada à expansão e ao crescimento socioeconómico da cidade. Depois da chegada dos portugueses, há 435 anos, tal como a história assinala, e no âmbito da sua política de exclusão, os angolanos que habitavam na Maianga, nos Coqueiros, na Ingombota e noutros lugares da Baixa foram empurrados para locais distante da zona “civilizada”, a chamada Cidade Alta. Esta compreendia a Fortaleza de S. Miguel, instituições do governo colonial e igrejas. Na verdade, a Baixa de Luanda passou a ser habitada apenas por figuras do poder político e militar e por altos funcionários da administração colonial.
Os nativos levados para a periferia ocuparam zonas sem qualquer urbanização, em muitos casos áreas perigosas, por ainda por lá aparecerem animais selvagens. Longe da dita civilização, ergueram-se as cubatas sobre a areia vermelha, razão pela qual viriam a chamar-se “Musekes”, que em kimbundu significa lugar (Mu) de areia (Seke). A palavra foi aportuguesada e ganhou a grafia de musseque. É assim que, no meio da terra vermelha, nasce o Bairro Operário (BO), que resultou da aglutinação de vários aglomerados que se estendiam das barrocas do Miramar à Lagoa do Kinaxixe. De acordo com a narração de antigos moradores, a actual denominação tem a ver com o facto de a zona do Bungo ser habitada por operários dos caminhos-de-ferro.
O Bairro Operário, que começou a ser povoado nos anos 30, teve a particularidade de estar situado no coração de Luanda, congregar pessoas saídas de vários pontos de Angola e, ao mesmo tempo, ser um musseque sem becos. O sociólogo Artur Pestana “Pepetela” disse, há anos, em entrevista ao Jornal de Angola, que “o Bairro Operário não nasce como musseque. Foi o primeiro bairro urbanizado em Luanda, construído pela Câmara Municipal de Luanda.
Porém, muitos outros atributos que podiam sustentar esta característica lhe foram negados. Não havia asfalto, água canalizada, luz eléctrica e construções de carácter definitivo, nem qualquer tipo de saneamento básico. Para lá das cubatas que viriam a ser montadas, o bairro sempre conservou o seu quadrado. Até hoje, mantém as suas ruas bem traçadas e alinhadas, apesar de algumas “puxadas” para aumentar as áreas de residência.
Já dissemos que a história do Bairro Operário se confunde com o nascimento e expansão da cidade de Luanda. Jacques dos Santos, no seu livro ABC do Bê Ó, considera o bairro “praticamente uma instituição”. De uma ou de outra maneira acaba por o ser. A história que encerra certamente lhe confere esse estatuto. Os protagonistas das histórias que fizeram a história do Bairro Operário são muitos. Na sua composição entram respeitáveis famílias, intelectuais, comerciantes, músicos, farristas, boémios, lutadores, prostitutas, figuras bizarras e ate notáveis doentes mentais.
Jacques Arlindo dos Santos escreveu ainda que “cada luandense – até mesmo qualquer angolano do interior que tenha visitado Luanda –, esteja vivo ou morto, já foi ao Bairro Operário, por um instante, por um dia …”
Esta curiosidade em conhecer o Bairro Operário teve muito a ver com o negócio do corpo que lá se praticava, sendo este o lado negativo a que Jacques dos Santos chamou “Vidas do munhungu”. A prostituição, naquelas paragens, teve como pioneiras brancas portuguesas que em “janelinhas” faziam convites a homens interessados em desfrutar de seus corpos a troco de dinheiro.
O “ofício” estendeu-se depois a todas as raças e cores. Jovens angolanas, saídas de todos os bairros de Luanda, não foram excepção. Este tipo de negócio tinha os seus pontos e intervenientes conhecidos e deu má fama ao bairro. Mas, nos dias de hoje, já não se ouve falar da prática do “munhungu”. Como faz parte da história do BÔ deve ser contada.
Para lá da discriminação e de todas as espécies de exploração e repressão, os angolanos, no Bairro Operário, nunca deixaram de expressar as suas alegrias e tristezas, através da música e da dança. Em vários recintos eram organizados os chamados bailes. Havia farras para todos os gostos e bolsos. As opções iam desde as festas de quintais, onde a vedação em aduelas e chão de terra batida atraíam os convivas e inspiravam os dançarinos. Também havia farras organizadas por várias agremiações, sendo o Desportivo União de S. Paulo (DUSP) a que mais perdurou e se notabilizou.
Em qualquer uma destas farras desfilavam “kilumbas” belas e pretendentes não faltavam. Foi no Bairro Operário que Benjamim enlouqueceu de amores por uma das beldades da época. O poema ” Namoro”, de Viriato da Cruz, narra com detalhes o sofrimento pelo qual passou aquele embriagado de amor para conquistar a sua amada. Rui Mingas musicou o mesmo poema para que toda a cena ficasse gravada nos nossos ouvidos. Na verdade, passam-se as épocas, morrem muitos dos protagonistas das histórias do bairro, mas não muda a vontade de se apaixonar e até amar uma rapariga do Bairro Operário. Paulo Flores, num passado recente, também se apaixonou e, por isso, cantou para que todos soubessem que teve “uma namoradinha que era a moça mais formosa do Bairro Operário”. Isso demonstra a força e o fascínio que o lugar desde sempre causou.
O Bairro Operário não vivia só de farras e engates. Também houve desfiles de Carnaval que ficaram célebres. No desporto, o velho Demosthenes de Almeida levou muitos miúdos à prática de exercício físico e das corridas. Por isso, deixou o seu nome gravado no Atletismo angolano. Nestes fervilhantes movimentos, aconteciam outras manifestações culturais. A música era o ponto alto. Com canções de intervenção, os músicos angolanos reivindicavam os seus direitos, usurpados e ignorados pelos colonialistas portugueses.
Recentemente, por ocasião do 35º aniversário da independência de Angola, Amadeu Amorim, nacionalista e conhecida figura do “Processo dos 50″, explicou, ao Jornal de Angola, como a música e a política se casaram no Bairro Operário para lutar pela libertação de Angola e, consequentemente, dos angolanos.
Amadeu Amorim, um dos membros dos Ngola Ritmos, afirma que aquele grupo ajudou “a catapultar o Bairro Operário para os anais da história da resistência política e cultural de Angola”. Referiu também que tal bairro foi criado pelos colonos para confinar e controlar a intelectualidade angolana. “O BÔ foi criado para ser o gueto da intelectualidade angolana, para melhor ser controlada”, lembrou.
A história da criação dos Ngola Ritmos remonta aos anos 50. No Bairro Operário, o cidadão angolano Aniceto Vieira Dias mobilizou amigos seus e assim nasceu o grupo. Este conjunto foi-se afirmando e, sobretudo, fez passar mensagens que davam conta da necessidade da mudança de consciência dos angolanos.
De acordo com Amadeu Amorim, estes apelos eram feitos numa altura em que os negros eram mortos indiscriminadamente no bairro. “Já havia a Pide e os bufos, grupos que andavam de farolim na testa e na calada da noite matavam quem não fosse branco”, denunciou. Os Ngola Ritmos cantaram “Monami” que foi uma chamada de atenção aos jovens angolanos negros para que não saíssem de casa à noite.
Incidentes como estes, outras limitações e serviçais que os colonos impunham aos angolanos, levaram a que os jovens da época, sensibilizados por mais velhos, aliassem a actividade cultural à política. Assim, os Ngola Ritmos envolveram-se numa intensa mobilização e consciencialização dos angolanos para o momento que se vivia. Deste modo nasceram várias células. Os elementos do grupo tratavam da distribuição de panfletos por onde passassem. “O conjunto criou o efeito bola de neve quando num dia foram distribuídos vários panfletos em diferentes lugares”, lembrou Amadeu Amorim.
Assim se dá um amplo movimento de resistência ao colonialismo. José Alberto Van-Duném “Beto Van-Duném” recordou que o movimento cultural de resistência ao colonialismo no Bairro Operário se traduziu no ” grito” dos angolanos saído daquela parcela de Luanda.
Este movimento entrou em ebulição nos fins dos anos 50 e com ele vieram as rusgas. Nele estavam envolvidos, além dos já citados, os seus mentores; Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Higino Aires de Almeida, Ilídio Machado, outras conhecidas figuras e também muitos anónimos que comungavam do mesmo desejo de liberdade.
Palco de vários feitos dignos de registo, o Bairro Operário continua a ocupar a mesma superfície. Já viu partir muitos dos seus filhos para outras paragens ou da vida. Mas as histórias do passado continuam a ser contadas. Quem nasceu, ou muito cedo foi para lá morar, esteja onde estiver, é com muito orgulho que diz “sou natural do BÔ”.
Assim, de um lugar de ” desterro”, o Bairro Operário é a terra de quem o viu erguer-se e vivenciou a sua trajectória. É o lugar onde está enterrado o cordão umbilical de muitos, por isso nunca esquecido. Daí o sentimento de pertença que todos “beôencesses” sentem pelo seu chão.
Mas, nos dias de hoje, o sentimento de amor e fascínio pelo bairro mistura-se com a nostalgia de outros tempos. Altura em que reinava um ambiente de camaradagem e companheirismo. O vizinho era o familiar mais próximo que se tinha. As amizades eram verdadeiras e eternas. Os comerciantes faziam fiado. Todos se conheciam. A limpeza e organização imperavam nas ruas do Bairro Operário. Estes são detalhes que hoje só são visíveis através das memórias dos que viveram no “bom tempo”.
O cenário que o Bairro Operário apresenta é desolador. Ruas enlameadas, águas pretas e fétidas, lixo, fossas dos edifícios rebentadas e estradas de terra batida esburacadas. Este postal dá um bom exemplo de como se vive sem qualidade de vida. “Eu nunca vi o BÔ assim”, comentam frequentemente os moradores mais antigos da zona. Nos olhos e no rosto de quem pronuncia estas palavras é notório o desalento.
Por conta do estado lastimável das ruas e até de muitas casas do Bairro Operário são muitos os que pedem que “venha a requalificação”. Esse processo já está em curso. O Executivo já anunciou que o município do Sambizanga vai conhecer outro alinhamento urbanístico nos próximos anos e o Bairro Operário, fazendo parte do município, está naturalmente abrangido.
Se por um lado os moradores querem habitações mais dignas, saneamento adequado e um meio ambiente mais saudável, por outro, nenhum natural do Bairro Operário quer deixar o seu pedaço de chão e rumar para outras zonas. “Afinal, eles são do Bairro Operário ou, simplesmente, BÔ. O tal Boletim Oficial para os mais kotas.
Agostinho Neto, que se tornou o primeiro Presidente da Angola independente, também viveu no Bairro Operário. Apesar de ter nascido em Kaxicane, região de Icolo e Bengo, foi naquele musseque que, ainda muito jovem e enquanto estudante, cimentou a sua veia política. Pela vontade de mostrar aos angolanos o caminho a seguir para a liberdade, passou a instruir alguns jovens nas explicações que dava em casa dos seus pais que ficava na Rua H.
Estudante da Igreja Metodista, Agostinho Neto sempre se mostrou estudioso. Concluiu o Liceu Salvador Correia e, depois, foi estudar Medicina a Portugal. Voltou a Angola para, num consultório próximo do Bairro Operário, ajudar com consultas muitos dos seus concidadãos. Nessa altura, Neto já era notável por via da política, da sua profissão e por ser homem de cultura. Actualmente, a antiga moradia da família deu lugar ao Centro Cultural Agostinho Neto em homenagem a “Manguxi”.
Nestes dias, o Centro Cultural Agostinho Neto está a ser reabilitado. Em todo o caso, ali existe um acervo que dá a qualquer visitante a possibilidade de tomar contacto com a obra e vida do “guia imortal da revolução angolana”. Sempre vale a pena ler ou reler o poema ” Havemos de Voltar”.
Visão de alguém que amava o Bairro
Escritor Angolano
Rosalina Mateta/Jornal de Angola
NR:Situado ao lado esquerdo da Avenida dos Combatentes, de quem vai da baixa para a alta, o BO, bem como o Marçal, no termo da avenida do lado direito, foram locais de “visita” obrigatória para os militares, porque em tempo de guerra também se limpam “armas”!
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