Ninguém sabe ao certo quantos são. Alguns referem oitocentos mil, outros um milhão e meio. Vieram por barcos e por aviões, golfados em caudais intermináveis de desespero e desamparo. Imobilizaram-se ao frio, ao pudor, o cansaço. O eco do seu êxodo, sem bíblia nem Israel, condoeu então o mundo. O velho império português retomava cabisbaixo, naufragado, às praias de onde, cinco séculos atrás, partira para uma epopeia de façanhas imorredoiras .
Refeitos os bocados de cada um, ergueram-se e atiraram-se em frente. Chegaram, em pequenos grupos, a todo o país; e em pequenas ocupações, a todos os sectores. Como novos bandeirantes, colonos uma vez mais, foram para o interior carregando cóleras e pânicos, vinganças e ousadias. A sua raiva foi a sua força; a anti-fé fê-los mover montanhas, dominar medos, vencer a loucura e o desamor. E dar provas espantosas de coragem, de persistência, de engenho de invenção.
ajudas de instituições, de subsídios, de empréstimos, de amigos, começaram a fixar-se e a transformar os locais onde se detiveram. A emigração e o exílio tinham despovoado meio país. Aldeias inteiras apenas albergavam velhos e crianças, povoações havia que não tinham sequer um habitante. Era um país de deserções e decrepitudes a viver das mesadas dos emigrantes e dos militares, e das contas dos turistas; um país onde estava (está) tudo por fazer, por merecer; como estavam (estão) os sertões da memória africana.
Então repetiram aqui o que há decénios faziam lá. Mas lá tudo era grande, fácil, farto, acessível: mão-de-obra, créditos, comércios, terrenos, colheitas, gados, máquinas, solidariedades. Havia terra, terra, e espaço e, como no oeste americano, sonho. Um homem tinha, se quisesse, a dimensão de um deus.
Há centenas de anos que desembarcamos de idas e retornos, a diferença nunca foi muita, que pegamos em proles, haveres, ilusões e feridas, e partimos para dentro, oceanos e continentes, em peregrinações interiores de fé, cobiça e trapaça.
Com a mesma convicção que iniciámos mares e impérios desistimos deles, renunciámos a eles. Deixamos tudo a meio, talvez por sermos, sem o saber, suficientemente sábios para isso. «Não foi a riqueza, nem a terra que Vasco da Gama buscou nos Lusíadas. Foi», diz-nos o professor Agostinho da Silva, «a Ilha dos Amores» .. Como a não encontrou/encontrámos, . suspendemo-nos, incompletamo-nos - que é uma maneira de nos completar. Daí que o fado seja a nossa realidade e o sebastianismo a nossa igreja. Estamos sempre a
partir e a chegar, somos retornados de nós próprios. Expulsos há dez anos de África queremos partir de novo para África - outra. Samora Machel é reverso de Vasco da Gama. A maior parte dos que vieram irá, porém, perecer aqui. Não sobreviverá à morte da sua Angola, do seu Moçambique, da sua Guiné. Que tenta reconstruir em Moncorvo, em Viseu, em Lisboa, em Sagres, em ...
Do mesmo modo que tentou reconstruir Moncorvo, Viseu, Lisboa, Sagres em Angola, em Moçambique, na Guiné, em Cabo Verde, em S. Tomé, na Índia, no Brasil. África foi portugalizada em África nos últimos séculos; Portugal está a ser africanizado em Portugal nos últimos decénios. Os musseques do Prenda irrompem no Alto do Dafundo; as marrebentas agitam os bailes dos domingos suburbanos; as churrasqueiras florescem nas estradas beirãs; o caril, a cerveja, o fumo, os fumos, sobem aos planaltos nortenhos; o imaginário dilata-se; as histórias de caça, de aventuras, de magia, de abundância, perpassam os cabeços de granito e giesta. Um sopro quente perturba a pele dos que ficaram, dos que na história só vêem partir, soldados, missionários, mercadores, emigrantes, xilados, e vêem voltar: deslumbrantes de riqueza uns, pasmados de vazios outros.
Vai fazer agora dez anos que o princípio do fim se deu. O que aconteceu, entretanto, a essas populações escolhidas para expiar a culpa do nosso colonialismo? Portugal está reduzido à sua origem, está devolvido a ele próprio - de vez. A exaustão apazigua as feridas, dissolve a angústia, enevoa a memória, gera o futuro. Novos países surgem aqui, em Angola, em Moçambique, na Guiné, em Cabo Verde, unidos na mesma língua e no mesmo afecto.
Quando D. Dinis acaba o seu reinado Portugal está pronto. Território definido, possui campos férteis (defendidos das areias pelo Pinhal de Leiria), dispõe de castelos sólidos (que não deixam avançar os espanhóis), desfruta de religião própria, exulta vontade de existir. xistir desenvolvendo-se internamente (podia ser hoje uma Dinamarca), ou derramando-se externamente. Derramou-se.
Engendra então a espantosa gesta dos Descobrimentos - que o faz mudar o mundo e perde-se de si. De senhores em Luanda, Lourenço Marques e Bissau, passamos a criados em Paris, Bona e Bruxelas. Regressados de uma condição e de outra, encontramo-nos no ponto de partida. E o pequeno berço range ao peso dos que se lhe aninham, ora cansados e submissos, ora esbracejantes e coléricos.
Portugal está a ser reconstruído pela raiva dos retornados. E a raiva dá muita força. «Em breve vamos sentir que estamos a ser colonizados por eles», especifica-nos o professor Agostinho da Silva. «Eles vão lançar mão a tudo ... agarrar-se à terra, usar com as pessoas de cá os mesmos métodos que usaram com as de lá. Para eles o aldeão é o preto, o nosso camponês começa já a dizer: patrão retornado é bruto l». «Cá os retornados olham e dizem: vamos fazer aqui a nossa vida como fazíamos em África, que não deu certo por culpa destes tipos, porque o Exército não se portou bem, nem os políticos». «Eles acham que têm que melhorar Portugal como os brasileiros de Camilo ... dentro de alguns anos o País vai reconhecer que a força fecundadora lhe foi dada por eles. São por natureza construtores de impérios, não são navegadores. No Brasil fundaram fazendas, em África abriram lojinhas».
«Para aqui não trazem divisas, como os emigrantes, constroem é coisas. E quando os emigrantes voltarem vão cair sob o seu domínio. Eles dominarão quando as reservas de oiro se acabarem e quando as remessas dos emigrantes cessarem. Nessa altura também o FMI terá desaparecido». Apontada como um fenómeno ímpar de absorção social, só possível em povos de grande generosidade,
a integração dos retomados tornou-se, escassos anos após a sua chegada, um caso surpreendente. A desconfiança inicial, por vezes hostilidade, com que foram recebidos, sucedeu a convivência a amenidade. A própria palavra «retornado» (rapidamente popularizada apesar de nem sempre exacta ou justa) quase que não se ouve já.
O exemplo que deram de trabalho, de iniciativa, de inter-ajuda, de perseverança granjear-Ihe-iam depressa respeito e admiração. E temor .. Desde ministros poderosos, no Governo Central - (Almeida Santos) a vogais humildes nas autarquias interiores (das 12 câmaras do distrito de Bragança, por exemplo, oito são de retornados); desde industriais prósperos a indigentes asilados, desde o grande hoteleiro de Albufeira à empregada de copa de Castro Daire, desde o aviário modelo de Pegões à queijaria tosca da Estrela, estão em toda a parte, bispos, militares, juízes, contrabandistas, artistas, jornalistas, cientistas, cozinheiros, professores, polícias, prostitutas, chulos, desportistas, funcionários, estão em toda a parte transformando o meio, matizando o tecido social, alterando os espectros políticos, religiosos, morais, ideológicos. De subvalorizados passar a sobrevalorizados. Vivendo em círculos concêntricos assumem-se em certas zonas como castas de poderio crescente. Alguns tomam-se os novos donos da terra.
«Mais de 50 por cento vive melhor aqui do que lá», repetem-nos. Hoje controlam vários sectores, são a sua classe dirigente e exigente; formam uma rede por todo o país que se organiza, alarga, fortalece, interpenetra. Mais do que o dinheiro, porém, ou a riqueza em si, é o triunfo, o êxito, o domínio que lhes interessa. «Se vez de nos terem disperso pelo país nos tivessem dado uma província só para nós, éramos agora uma potência, os de fora tinham de nos pedir batatinhas!» afiança-nos Custódio Antunes, no Cartaxo, antigo camionista no norte de Angola ..
Foi jogando nessa mentalidade que surgiram, por exemplo candidatos próprios à presidência da República, como Pompílio da Cruz, e candidatos seus representantes privilegiados como Galvão de Melo.
Os grandes partidos políticos depressa passaram a aliciá-los e a recebê-los nas suas estruturas internas de onde os injectaram na administração pública. «Eles é que fizeram pender, a balança no sentido da contra revolução!» comenta o antigo deputado José Manuel Jara, único retornado no grupo parlamentar do PCP.
A sua inserção provoca em muitos observadores surpresa. A França (com retomados da Indochina, da Tunísia, de Marrocos, da Argélia), a Itália (da Líbia e da Abissínia), a Bélgica (do Congo) ainda sofrem internamente as sequelas na sua descolonização. Aparentemente Portugal dirigiu-a. Aparentemente todos se ajeitaram. «Foi como se tivéssemos de entrar num estádio cheio, abana daqui,
acotovela dali, fomos avançando». A frase de João Meira, é expressiva. «A grande ajuda ao retornado foi ele próprio que a deu. Somos um povo com uma capacidade de integração maravilhosa, e em todas as circunstâncias. Fomos o único povo da Europa que se adaptou a viver no sertão, que se casou com pretas.
Mas a nossa adaptação tem sido feita à custa de muito esforço, de muito sacrifício, de muitas vítimas. Sofremos de uma doença muito grande: o saudosismo». Para João Cabral, oriundo do Lobito, actualmente director do Apoio Cristão Internacional, «o êxito da integração é muito relativo. Foi a política seguida pelos governos que calou os retornados. Separaram-nos, polvilharam-nos pelo país, tiraram-nos a força. E eles resignaram-se. Em França, não, os argelinos foram existentes, o mesmo aconteceu noutros países, por isso se ouve ainda falar dos seus retornados. Aqui amocharam!».
Diversos organismos surgiram em sua defesa e apoio. Organismos religiosos, políticos, assistenciais,culturais, educativos. Oficiais, como o IARN; internacionais, como o Apoio Cristão e a Cruz Vermelha; filantrópicos, como a Associação de Apoio aos Angolanos; reivindicativos, como a ANERM - Associação dos Naturais e Ex-Residentes de Moçambique, e a FRAUL - Movimento Nacional de Fraternidade Ultramarina (que pretendem indemnizações do Estado); recreativos, como «Os Inseparáveis do Lubango» (cerca de sete mil no último piquenique realizado no Buçaco. Os mais crentes têm uma Santa sua, a Nossa Senhora dos Retornados, a quem dedicaram há pouco, em Oliveira do Bairro, grandes festividades.
Dispõem também de uma imprensa própria (como o jornal «O Retornado», o boletim «A Voz do Cid») e, muito próxima (casos do «Dia» e do «Diabo»).
Após a sua chegada a Lisboa, onde eram acolhidos pela Cruz Vermelha e pelo IARN, recebiam alimentação e assistência; uma parte beneficiou de créditos, subsídios e empréstimos que permitiram a alguns, dado o seu juro bonificado, reorganizar-se e lançar-se em diversas actividades. Por quase todo o país surgiram, assim, empresas comerciais (cafés, restaurantes, supermercados), industriais (aviários, fábricas transformadoras, serviços de frio), agrícolas, transportadoras, piscatórias, etc.
Os funcionários públicos passaram por sua vez a ser integrados no Quadro Geral de Adidos com 60 por cento do ordenado. Educação, Saúde, Agricultura, Administração Interna (PSP), Finanças e Administração Autárquica são os ministérios onde se encontram maioritariamente. Mal concedidos, ou não concedidos, seriam os créditos para compra de habitação própria (572 mil contos), depressa bloqueados pela burocracia e pela falta de vontade política. As especulações, os desvios de fundos, a corrupção, o compadrio, o oportunismo, o roubo, dificultaram e desacreditaram no entanto (as irregularidades ascendem a mais de meio milhão de contos) parte do esforço desenvolvido. Os processos judiciais levantados (1 800 por fraude, no valor de 130 000 contos) continuarão a correr depois da extinção da Comissão Liquidatária do IARN.
«O povo português não é colonialista», repete, insuspeito e surpreendente, Samora Machel. Muitos dos que voltaram de África também não. Foram mais colonizados do que colonizadores, deram mais do que receberam, deixaram mais do que trouxeram. Os que, deles, colonizaram, exploraram, não estão entre eles - arraia miúda espalhada de norte a sul, de oeste a este, a trabalhar com as suas proles e as suas fúrias, noites dentro, sem horários, sem fins-de-semana, na ânsia de um aturdimento devorador e final. Os anos passaram. Os frutos disso surgiram. O sopro de renovação que desencadearam transformou já a face portuguesa. A que preço? Um país marginal surge paralelo ao oficial. E sobrepõe-se-Ihe por vezes em vitalidade, em provocação, em ousadia.
É o país ambíguo e secreto das especulações, dos tráficos, dos subornos, das cumplicidades; o país que evita alfândegas, escamoteia fiscos, submerge éticas; o país que desconhece balanças de pagamento e imposições do FMI.
O português sempre foi sábio nesse saber escapar-se às normas da legalidade - política, económica, religiosa, militar. Daí que uma parte discreta de retomados se lhe tenha introduzido, célere. O submundo das cidades, os negócios penúmbreos, as especulações vertiginosas, foram roleta em que apostaram e ganharam. Os «bas-fonds» da capital, as boites de província, as transacções secretas (diamantes, automóveis, electrodomésticos, favores a poderosos) passaram a passar por eles na determinação de reconquistarem aqui privilégios e níveis de vida perdidos lá.
Desinseridos da luta que os trabalhadores portugueses desenvolvem há anos, curto circuitaram-na em diversos sectores por falta de tradição (dela) e por ânsia de caírem nas boas graças (e nos bons lugares) do sistema emergido.
Vindos de terras de menor exigência mas de maior abertura acabaram por modificar-se ao modificar o meio. Sobretudo os mais jovens, detentores de estatutos de outra liberdade, sem os tabus aqui solidificados nem as normas aqui secularizadas. ' As relações que estabeleceram com os que encontraram permitiram-lhes alterar comportamentos; idêntico fenómeno deu-se, aliás com os filhos dos emigrantes em férias. Entre os que vieram de África e os que vêem da Europa, o velho português abre-se, também ele, a novas convivências, a novas frontalidades. Os turistas estrangeiros e as telenovelas brasileiras ajudaram ao cerco que os tempos pós-modernos nos estendem à volta. Os jovens que enchem hoje os cafés e as discotecas da província são já produto dessa tão fascinante como curiosa miscigenação do cultural. As dificuldades, as faltas de perspectivas, os desalentos são os mesmos para todos eles, pretos, e brancos, e mulatos, e mestiços, e amarelos, e loiros, e ciganos; os que retomaram de África, os que nasceram cá, os que hão-de vir da Europa, os que não poderão já partir porque já não há África, nem Europas para desbravar e servir. O ciclo está fechado.
Expulsos do paraíso por pecados originais não assumidos, vivem agora assombrados na fixidez da memória. Passar horas entre si é recuar no tempo. As suas casas estão cheias dele, de objectos, de fotos e de símbolos, o «naperon», a estatueta de madeira, o carro, o tapete, a música, a balalaica, o espeto do hurrasco a pele de cobra. À volta da mesa bebe-se o cálice do reencontro. A solidariedade é-lhes uma religião quase patética, feita de rituais, de perguntas, de ternuras, de silêncios, de imprecações. Baptizados pelo mesmo fogo, conheceram o mesmo pânico, o mesmo desamparo, o mesmo Golgota, a mesma humilhação; um pacto de suor uniu-os para sempre. Não podem por isso aceitar o que se passou. Morreriam se o fizessem. Dizem-se, sentem-se enganados pelos políticos que os «iludiram deliberadamente»; dizem-se, sentem-se traídos pelas Forças Armadas que os deixaram, sem intervir, se golpeados; dizem-se, sentem-se vítimas e inocentes; só assim conseguirão salvar-se perante si mesmos.
Daí o seu apoio aos grupos de direita e extrema-direita aos que, por ironia, foram os primeiros grandes responsáveis pela «tragédia da descolonização» .. Não proceder como procedeu era, porém, admitir a sua cumplicidade, o seu desconhecimento, o não sentido, afinal, da sua vida - lá. Cá, ele contribuiu para o desandar da Revolução. Esta, que o sabia (na 5.ª Divisão houve quem preconizasse o seu abandono para o seu massacre), trouxe-o, no entanto, de regresso numa ponte aérea de incomensurável dimensão. A maior parte deles, porém, veio com a roupa do corpo, com escassos haveres em caixotes e notas inúteis nos bolsos.
Alguns tentaram permanecer em África. Amavam-na, serviam-na, era a sua terra. Nada tendo a esconder, nada tinham pensavam, a recear. Os governantes diziam-lhes, pela imprensa e pelos comícios, isso mesmo. Caso a caso, história a história, as suas vidas fazem-se mitos. As Africas distanciam-se na memória, ficam névoa que se dispersa pelo país, arco-íris em horizontes queimados de futuro.
Alentejo, Algarve, Beiras, Trás-os-Montes, em todo o lado encontrámos as mesmas faces, os mesmos olhares, as mesmas acusações, o mesmo aturdimento. Como exércitos de inocentes depois da derrota, estendemos as palavras e abrem-nas ao sol: Não têm arrependimento porque não têm culpa. A todos, e foram centenas, repetimos a pergunta: nunca pensaram que lhes poderia acontecer o que aconteceu? As respostas são unânimes: nunca! Não tinham informação do que se passava, os jornais e a rádio nada diziam, ou diziam que estava tudo resolvido.
Apenas ouviremos, num terceiro andar de Benfica, uma excepção: «Os que tinham consciência da situação sabiam. Aliás depois, da independência da Argélia e da independência do Congo, era previsível. Receava até que fosse pior». Ex- deputado do PCP, o Dr. José Manuel Jara acrescenta: «A camada progressista e intelectual de Angola era, porém, uma minoria. Em 600 mil brancos devia haver mil que tinham consciência do que se passava. Os outros quiseram viver a ilusão colonial até ao fim. Não conseguem agora suportar esse fim. Vieram de um mundo grande onde criaram coisas grandes. Aqui tentam fazer o mesmo, construir também coisas grandes. O pior é que aqui tudo é pequeno!» Nos extremos sociais que ocupam, os retomados habitam as casas mais modernas das aldeias e os tugúrios mais deprimentes das cidades. As grandes vivendas que irrompem pela província são, na verdade, deles e dos emigrantes; os bairros mais degradados também, como os de pré-fabricados vindos da Holanda e da Noruega, e de outros países caritativos. Desfazem-se ao frio, ao vento, ao tempo, em Braga, em Vila Real, em Viseu, em Moncorvo, em Montalegre, em Miraflores.
Construir casa e montar negócio foi o seu grande projecto lá e cá. A primeira coisa (única?) que o português fez em África e no Brasil foi o levantar abrigo, abrir balcão, arranjar mulher, semear prole; a sua melhor alfaia foi, continua a ser, a revenda. Daí o ele só saber organizar-se economicamente e adiologicamente (sem ideologia). Os povos de que descende/descendemos, judeus, romanos, fenícios, cartagineses, vieram, aliás, pelo mesmo corredor, o do Mediterrâneo, e tinham todos características comerciais, não agrárias.
As perspectivas de intensificar agora o comércio (legal) são, porém, difusas. O boom que se verificou nele, e por ele, na construção civil, nas explorações hoteleiras, industriais e pecuárias (possível devido aos empréstimos do IARN) entrou em declínio. Os economistas do FMI estão a desempenhar hoje aqui o mesmo papel que os políticos de Salazar desempenharam ontem em África.
Teremos de fazer outra, e depois outra, e outra descolonização; de voltarmos a ser náufragos e retornados porque só através dos regressos e das partidas nos reencontraremos. «Assistimos já», diz o escritor Rui Nunes (os criadores pressentem estes fenómenos antes dos técnicos e dos políticos) «a um retorno a África», visível, por exemplo, «no fascínio pela sua literatura; voltamo-nos para Sul, abandonamos a Europa». Que não, nos quer. Procuramos o útero na distância, o passado no destino; o País volta a estar pronto. D. Dinis poderá ser o próximo Presidente da República.
Fontes: compõem este escrito.
Fernando Dacosta http://www.prof2000.pt/users/secjeste/aidaviegas/Pg001000.htm
Refeitos os bocados de cada um, ergueram-se e atiraram-se em frente. Chegaram, em pequenos grupos, a todo o país; e em pequenas ocupações, a todos os sectores. Como novos bandeirantes, colonos uma vez mais, foram para o interior carregando cóleras e pânicos, vinganças e ousadias. A sua raiva foi a sua força; a anti-fé fê-los mover montanhas, dominar medos, vencer a loucura e o desamor. E dar provas espantosas de coragem, de persistência, de engenho de invenção.
ajudas de instituições, de subsídios, de empréstimos, de amigos, começaram a fixar-se e a transformar os locais onde se detiveram. A emigração e o exílio tinham despovoado meio país. Aldeias inteiras apenas albergavam velhos e crianças, povoações havia que não tinham sequer um habitante. Era um país de deserções e decrepitudes a viver das mesadas dos emigrantes e dos militares, e das contas dos turistas; um país onde estava (está) tudo por fazer, por merecer; como estavam (estão) os sertões da memória africana.
Então repetiram aqui o que há decénios faziam lá. Mas lá tudo era grande, fácil, farto, acessível: mão-de-obra, créditos, comércios, terrenos, colheitas, gados, máquinas, solidariedades. Havia terra, terra, e espaço e, como no oeste americano, sonho. Um homem tinha, se quisesse, a dimensão de um deus.
Há centenas de anos que desembarcamos de idas e retornos, a diferença nunca foi muita, que pegamos em proles, haveres, ilusões e feridas, e partimos para dentro, oceanos e continentes, em peregrinações interiores de fé, cobiça e trapaça.
Com a mesma convicção que iniciámos mares e impérios desistimos deles, renunciámos a eles. Deixamos tudo a meio, talvez por sermos, sem o saber, suficientemente sábios para isso. «Não foi a riqueza, nem a terra que Vasco da Gama buscou nos Lusíadas. Foi», diz-nos o professor Agostinho da Silva, «a Ilha dos Amores» .. Como a não encontrou/encontrámos, . suspendemo-nos, incompletamo-nos - que é uma maneira de nos completar. Daí que o fado seja a nossa realidade e o sebastianismo a nossa igreja. Estamos sempre a
partir e a chegar, somos retornados de nós próprios. Expulsos há dez anos de África queremos partir de novo para África - outra. Samora Machel é reverso de Vasco da Gama. A maior parte dos que vieram irá, porém, perecer aqui. Não sobreviverá à morte da sua Angola, do seu Moçambique, da sua Guiné. Que tenta reconstruir em Moncorvo, em Viseu, em Lisboa, em Sagres, em ...
Do mesmo modo que tentou reconstruir Moncorvo, Viseu, Lisboa, Sagres em Angola, em Moçambique, na Guiné, em Cabo Verde, em S. Tomé, na Índia, no Brasil. África foi portugalizada em África nos últimos séculos; Portugal está a ser africanizado em Portugal nos últimos decénios. Os musseques do Prenda irrompem no Alto do Dafundo; as marrebentas agitam os bailes dos domingos suburbanos; as churrasqueiras florescem nas estradas beirãs; o caril, a cerveja, o fumo, os fumos, sobem aos planaltos nortenhos; o imaginário dilata-se; as histórias de caça, de aventuras, de magia, de abundância, perpassam os cabeços de granito e giesta. Um sopro quente perturba a pele dos que ficaram, dos que na história só vêem partir, soldados, missionários, mercadores, emigrantes, xilados, e vêem voltar: deslumbrantes de riqueza uns, pasmados de vazios outros.
Vai fazer agora dez anos que o princípio do fim se deu. O que aconteceu, entretanto, a essas populações escolhidas para expiar a culpa do nosso colonialismo? Portugal está reduzido à sua origem, está devolvido a ele próprio - de vez. A exaustão apazigua as feridas, dissolve a angústia, enevoa a memória, gera o futuro. Novos países surgem aqui, em Angola, em Moçambique, na Guiné, em Cabo Verde, unidos na mesma língua e no mesmo afecto.
Quando D. Dinis acaba o seu reinado Portugal está pronto. Território definido, possui campos férteis (defendidos das areias pelo Pinhal de Leiria), dispõe de castelos sólidos (que não deixam avançar os espanhóis), desfruta de religião própria, exulta vontade de existir. xistir desenvolvendo-se internamente (podia ser hoje uma Dinamarca), ou derramando-se externamente. Derramou-se.
Engendra então a espantosa gesta dos Descobrimentos - que o faz mudar o mundo e perde-se de si. De senhores em Luanda, Lourenço Marques e Bissau, passamos a criados em Paris, Bona e Bruxelas. Regressados de uma condição e de outra, encontramo-nos no ponto de partida. E o pequeno berço range ao peso dos que se lhe aninham, ora cansados e submissos, ora esbracejantes e coléricos.
Portugal está a ser reconstruído pela raiva dos retornados. E a raiva dá muita força. «Em breve vamos sentir que estamos a ser colonizados por eles», especifica-nos o professor Agostinho da Silva. «Eles vão lançar mão a tudo ... agarrar-se à terra, usar com as pessoas de cá os mesmos métodos que usaram com as de lá. Para eles o aldeão é o preto, o nosso camponês começa já a dizer: patrão retornado é bruto l». «Cá os retornados olham e dizem: vamos fazer aqui a nossa vida como fazíamos em África, que não deu certo por culpa destes tipos, porque o Exército não se portou bem, nem os políticos». «Eles acham que têm que melhorar Portugal como os brasileiros de Camilo ... dentro de alguns anos o País vai reconhecer que a força fecundadora lhe foi dada por eles. São por natureza construtores de impérios, não são navegadores. No Brasil fundaram fazendas, em África abriram lojinhas».
«Para aqui não trazem divisas, como os emigrantes, constroem é coisas. E quando os emigrantes voltarem vão cair sob o seu domínio. Eles dominarão quando as reservas de oiro se acabarem e quando as remessas dos emigrantes cessarem. Nessa altura também o FMI terá desaparecido». Apontada como um fenómeno ímpar de absorção social, só possível em povos de grande generosidade,
a integração dos retomados tornou-se, escassos anos após a sua chegada, um caso surpreendente. A desconfiança inicial, por vezes hostilidade, com que foram recebidos, sucedeu a convivência a amenidade. A própria palavra «retornado» (rapidamente popularizada apesar de nem sempre exacta ou justa) quase que não se ouve já.
O exemplo que deram de trabalho, de iniciativa, de inter-ajuda, de perseverança granjear-Ihe-iam depressa respeito e admiração. E temor .. Desde ministros poderosos, no Governo Central - (Almeida Santos) a vogais humildes nas autarquias interiores (das 12 câmaras do distrito de Bragança, por exemplo, oito são de retornados); desde industriais prósperos a indigentes asilados, desde o grande hoteleiro de Albufeira à empregada de copa de Castro Daire, desde o aviário modelo de Pegões à queijaria tosca da Estrela, estão em toda a parte, bispos, militares, juízes, contrabandistas, artistas, jornalistas, cientistas, cozinheiros, professores, polícias, prostitutas, chulos, desportistas, funcionários, estão em toda a parte transformando o meio, matizando o tecido social, alterando os espectros políticos, religiosos, morais, ideológicos. De subvalorizados passar a sobrevalorizados. Vivendo em círculos concêntricos assumem-se em certas zonas como castas de poderio crescente. Alguns tomam-se os novos donos da terra.
«Mais de 50 por cento vive melhor aqui do que lá», repetem-nos. Hoje controlam vários sectores, são a sua classe dirigente e exigente; formam uma rede por todo o país que se organiza, alarga, fortalece, interpenetra. Mais do que o dinheiro, porém, ou a riqueza em si, é o triunfo, o êxito, o domínio que lhes interessa. «Se vez de nos terem disperso pelo país nos tivessem dado uma província só para nós, éramos agora uma potência, os de fora tinham de nos pedir batatinhas!» afiança-nos Custódio Antunes, no Cartaxo, antigo camionista no norte de Angola ..
Foi jogando nessa mentalidade que surgiram, por exemplo candidatos próprios à presidência da República, como Pompílio da Cruz, e candidatos seus representantes privilegiados como Galvão de Melo.
Os grandes partidos políticos depressa passaram a aliciá-los e a recebê-los nas suas estruturas internas de onde os injectaram na administração pública. «Eles é que fizeram pender, a balança no sentido da contra revolução!» comenta o antigo deputado José Manuel Jara, único retornado no grupo parlamentar do PCP.
A sua inserção provoca em muitos observadores surpresa. A França (com retomados da Indochina, da Tunísia, de Marrocos, da Argélia), a Itália (da Líbia e da Abissínia), a Bélgica (do Congo) ainda sofrem internamente as sequelas na sua descolonização. Aparentemente Portugal dirigiu-a. Aparentemente todos se ajeitaram. «Foi como se tivéssemos de entrar num estádio cheio, abana daqui,
acotovela dali, fomos avançando». A frase de João Meira, é expressiva. «A grande ajuda ao retornado foi ele próprio que a deu. Somos um povo com uma capacidade de integração maravilhosa, e em todas as circunstâncias. Fomos o único povo da Europa que se adaptou a viver no sertão, que se casou com pretas.
Mas a nossa adaptação tem sido feita à custa de muito esforço, de muito sacrifício, de muitas vítimas. Sofremos de uma doença muito grande: o saudosismo». Para João Cabral, oriundo do Lobito, actualmente director do Apoio Cristão Internacional, «o êxito da integração é muito relativo. Foi a política seguida pelos governos que calou os retornados. Separaram-nos, polvilharam-nos pelo país, tiraram-nos a força. E eles resignaram-se. Em França, não, os argelinos foram existentes, o mesmo aconteceu noutros países, por isso se ouve ainda falar dos seus retornados. Aqui amocharam!».
Diversos organismos surgiram em sua defesa e apoio. Organismos religiosos, políticos, assistenciais,culturais, educativos. Oficiais, como o IARN; internacionais, como o Apoio Cristão e a Cruz Vermelha; filantrópicos, como a Associação de Apoio aos Angolanos; reivindicativos, como a ANERM - Associação dos Naturais e Ex-Residentes de Moçambique, e a FRAUL - Movimento Nacional de Fraternidade Ultramarina (que pretendem indemnizações do Estado); recreativos, como «Os Inseparáveis do Lubango» (cerca de sete mil no último piquenique realizado no Buçaco. Os mais crentes têm uma Santa sua, a Nossa Senhora dos Retornados, a quem dedicaram há pouco, em Oliveira do Bairro, grandes festividades.
Dispõem também de uma imprensa própria (como o jornal «O Retornado», o boletim «A Voz do Cid») e, muito próxima (casos do «Dia» e do «Diabo»).
Após a sua chegada a Lisboa, onde eram acolhidos pela Cruz Vermelha e pelo IARN, recebiam alimentação e assistência; uma parte beneficiou de créditos, subsídios e empréstimos que permitiram a alguns, dado o seu juro bonificado, reorganizar-se e lançar-se em diversas actividades. Por quase todo o país surgiram, assim, empresas comerciais (cafés, restaurantes, supermercados), industriais (aviários, fábricas transformadoras, serviços de frio), agrícolas, transportadoras, piscatórias, etc.
Os funcionários públicos passaram por sua vez a ser integrados no Quadro Geral de Adidos com 60 por cento do ordenado. Educação, Saúde, Agricultura, Administração Interna (PSP), Finanças e Administração Autárquica são os ministérios onde se encontram maioritariamente. Mal concedidos, ou não concedidos, seriam os créditos para compra de habitação própria (572 mil contos), depressa bloqueados pela burocracia e pela falta de vontade política. As especulações, os desvios de fundos, a corrupção, o compadrio, o oportunismo, o roubo, dificultaram e desacreditaram no entanto (as irregularidades ascendem a mais de meio milhão de contos) parte do esforço desenvolvido. Os processos judiciais levantados (1 800 por fraude, no valor de 130 000 contos) continuarão a correr depois da extinção da Comissão Liquidatária do IARN.
«O povo português não é colonialista», repete, insuspeito e surpreendente, Samora Machel. Muitos dos que voltaram de África também não. Foram mais colonizados do que colonizadores, deram mais do que receberam, deixaram mais do que trouxeram. Os que, deles, colonizaram, exploraram, não estão entre eles - arraia miúda espalhada de norte a sul, de oeste a este, a trabalhar com as suas proles e as suas fúrias, noites dentro, sem horários, sem fins-de-semana, na ânsia de um aturdimento devorador e final. Os anos passaram. Os frutos disso surgiram. O sopro de renovação que desencadearam transformou já a face portuguesa. A que preço? Um país marginal surge paralelo ao oficial. E sobrepõe-se-Ihe por vezes em vitalidade, em provocação, em ousadia.
É o país ambíguo e secreto das especulações, dos tráficos, dos subornos, das cumplicidades; o país que evita alfândegas, escamoteia fiscos, submerge éticas; o país que desconhece balanças de pagamento e imposições do FMI.
O português sempre foi sábio nesse saber escapar-se às normas da legalidade - política, económica, religiosa, militar. Daí que uma parte discreta de retomados se lhe tenha introduzido, célere. O submundo das cidades, os negócios penúmbreos, as especulações vertiginosas, foram roleta em que apostaram e ganharam. Os «bas-fonds» da capital, as boites de província, as transacções secretas (diamantes, automóveis, electrodomésticos, favores a poderosos) passaram a passar por eles na determinação de reconquistarem aqui privilégios e níveis de vida perdidos lá.
Desinseridos da luta que os trabalhadores portugueses desenvolvem há anos, curto circuitaram-na em diversos sectores por falta de tradição (dela) e por ânsia de caírem nas boas graças (e nos bons lugares) do sistema emergido.
Vindos de terras de menor exigência mas de maior abertura acabaram por modificar-se ao modificar o meio. Sobretudo os mais jovens, detentores de estatutos de outra liberdade, sem os tabus aqui solidificados nem as normas aqui secularizadas. ' As relações que estabeleceram com os que encontraram permitiram-lhes alterar comportamentos; idêntico fenómeno deu-se, aliás com os filhos dos emigrantes em férias. Entre os que vieram de África e os que vêem da Europa, o velho português abre-se, também ele, a novas convivências, a novas frontalidades. Os turistas estrangeiros e as telenovelas brasileiras ajudaram ao cerco que os tempos pós-modernos nos estendem à volta. Os jovens que enchem hoje os cafés e as discotecas da província são já produto dessa tão fascinante como curiosa miscigenação do cultural. As dificuldades, as faltas de perspectivas, os desalentos são os mesmos para todos eles, pretos, e brancos, e mulatos, e mestiços, e amarelos, e loiros, e ciganos; os que retomaram de África, os que nasceram cá, os que hão-de vir da Europa, os que não poderão já partir porque já não há África, nem Europas para desbravar e servir. O ciclo está fechado.
Expulsos do paraíso por pecados originais não assumidos, vivem agora assombrados na fixidez da memória. Passar horas entre si é recuar no tempo. As suas casas estão cheias dele, de objectos, de fotos e de símbolos, o «naperon», a estatueta de madeira, o carro, o tapete, a música, a balalaica, o espeto do hurrasco a pele de cobra. À volta da mesa bebe-se o cálice do reencontro. A solidariedade é-lhes uma religião quase patética, feita de rituais, de perguntas, de ternuras, de silêncios, de imprecações. Baptizados pelo mesmo fogo, conheceram o mesmo pânico, o mesmo desamparo, o mesmo Golgota, a mesma humilhação; um pacto de suor uniu-os para sempre. Não podem por isso aceitar o que se passou. Morreriam se o fizessem. Dizem-se, sentem-se enganados pelos políticos que os «iludiram deliberadamente»; dizem-se, sentem-se traídos pelas Forças Armadas que os deixaram, sem intervir, se golpeados; dizem-se, sentem-se vítimas e inocentes; só assim conseguirão salvar-se perante si mesmos.
Daí o seu apoio aos grupos de direita e extrema-direita aos que, por ironia, foram os primeiros grandes responsáveis pela «tragédia da descolonização» .. Não proceder como procedeu era, porém, admitir a sua cumplicidade, o seu desconhecimento, o não sentido, afinal, da sua vida - lá. Cá, ele contribuiu para o desandar da Revolução. Esta, que o sabia (na 5.ª Divisão houve quem preconizasse o seu abandono para o seu massacre), trouxe-o, no entanto, de regresso numa ponte aérea de incomensurável dimensão. A maior parte deles, porém, veio com a roupa do corpo, com escassos haveres em caixotes e notas inúteis nos bolsos.
Alguns tentaram permanecer em África. Amavam-na, serviam-na, era a sua terra. Nada tendo a esconder, nada tinham pensavam, a recear. Os governantes diziam-lhes, pela imprensa e pelos comícios, isso mesmo. Caso a caso, história a história, as suas vidas fazem-se mitos. As Africas distanciam-se na memória, ficam névoa que se dispersa pelo país, arco-íris em horizontes queimados de futuro.
Alentejo, Algarve, Beiras, Trás-os-Montes, em todo o lado encontrámos as mesmas faces, os mesmos olhares, as mesmas acusações, o mesmo aturdimento. Como exércitos de inocentes depois da derrota, estendemos as palavras e abrem-nas ao sol: Não têm arrependimento porque não têm culpa. A todos, e foram centenas, repetimos a pergunta: nunca pensaram que lhes poderia acontecer o que aconteceu? As respostas são unânimes: nunca! Não tinham informação do que se passava, os jornais e a rádio nada diziam, ou diziam que estava tudo resolvido.
Apenas ouviremos, num terceiro andar de Benfica, uma excepção: «Os que tinham consciência da situação sabiam. Aliás depois, da independência da Argélia e da independência do Congo, era previsível. Receava até que fosse pior». Ex- deputado do PCP, o Dr. José Manuel Jara acrescenta: «A camada progressista e intelectual de Angola era, porém, uma minoria. Em 600 mil brancos devia haver mil que tinham consciência do que se passava. Os outros quiseram viver a ilusão colonial até ao fim. Não conseguem agora suportar esse fim. Vieram de um mundo grande onde criaram coisas grandes. Aqui tentam fazer o mesmo, construir também coisas grandes. O pior é que aqui tudo é pequeno!» Nos extremos sociais que ocupam, os retomados habitam as casas mais modernas das aldeias e os tugúrios mais deprimentes das cidades. As grandes vivendas que irrompem pela província são, na verdade, deles e dos emigrantes; os bairros mais degradados também, como os de pré-fabricados vindos da Holanda e da Noruega, e de outros países caritativos. Desfazem-se ao frio, ao vento, ao tempo, em Braga, em Vila Real, em Viseu, em Moncorvo, em Montalegre, em Miraflores.
Construir casa e montar negócio foi o seu grande projecto lá e cá. A primeira coisa (única?) que o português fez em África e no Brasil foi o levantar abrigo, abrir balcão, arranjar mulher, semear prole; a sua melhor alfaia foi, continua a ser, a revenda. Daí o ele só saber organizar-se economicamente e adiologicamente (sem ideologia). Os povos de que descende/descendemos, judeus, romanos, fenícios, cartagineses, vieram, aliás, pelo mesmo corredor, o do Mediterrâneo, e tinham todos características comerciais, não agrárias.
As perspectivas de intensificar agora o comércio (legal) são, porém, difusas. O boom que se verificou nele, e por ele, na construção civil, nas explorações hoteleiras, industriais e pecuárias (possível devido aos empréstimos do IARN) entrou em declínio. Os economistas do FMI estão a desempenhar hoje aqui o mesmo papel que os políticos de Salazar desempenharam ontem em África.
Teremos de fazer outra, e depois outra, e outra descolonização; de voltarmos a ser náufragos e retornados porque só através dos regressos e das partidas nos reencontraremos. «Assistimos já», diz o escritor Rui Nunes (os criadores pressentem estes fenómenos antes dos técnicos e dos políticos) «a um retorno a África», visível, por exemplo, «no fascínio pela sua literatura; voltamo-nos para Sul, abandonamos a Europa». Que não, nos quer. Procuramos o útero na distância, o passado no destino; o País volta a estar pronto. D. Dinis poderá ser o próximo Presidente da República.
Fontes: compõem este escrito.
Fernando Dacosta http://www.prof2000.pt/users/secjeste/aidaviegas/Pg001000.htm
2010
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