É voz corrente que a integração dos chamados Retornados/Refugiados” das ex-colónias portuguesas foi pacífica, e que Portugal até conseguiu superar a poderosa França nessa matéria! Há alguma verdade nessa afirmação, mas terá sido assim tão linear? O autor, na qualidade de funcionário - retornado, expulso de Angola, vai tentar pôr o leitor em contacto com pessoas, famílias e funcionários públicos que tiveram de recomeçar a vida em Portugal, debaixo de dificuldades, privações várias, após terem deixado para trás – TUDO - [quiçá, a própria alma), em nome de uma Descolonização a que chamaram, imagine-se, de “Exemplar”, e que, ainda hoje, no ano de 2000, exibe as suas feridas crónicas - casos de Timor, Guiné, Moçambique e Angola - como é do conhecimento de todos. Pretendo, assim, com este modesto trabalho, prestar a minha justa homenagem a todos os “Retornados/Refugiados” que souberam engrandecer este Portugal, (nas artes, letras, ciências, ensino, funcionalismo público, construção civil, comércio, etc. ) na altura mais crítica das suas vidas e da sobrevivência deste país, recém saído do 25 de Abril de 1974.
I- A FUGA
Fujam, fujam... era a voz que se ouvia no cais de Lobito, naquela manhã de sol de 1975...
Ao longe, o matraquear das metralhadoras e o estoiro dos morteiros de sessenta milímetros. Era a guerra que chegara do mato e invadia a cidade. Bernardo tinha saído de casa para o seu emprego de contínuo no porto e só teve tempo para saltar para o bojo de uma traineira, ainda agarrada ao molhe por um cabo de aço, rangendo e pingando ferrugem amarelada. O motor foi ligado a todo o gás e a embarcação desprendera-se do cais, deixando um pedaço do cabo de aço ainda agarrado ao molhe. Malaquias, só com a roupa que levara no corpo para o serviço, um fato azul, gravata vermelha e camisa branca, foi atirado para o convés da traineira, ficando quase a lamber as tábuas cheirando a peixe seco e que forravam o castelo da proa. O mar estava grosso; as nuvens de fumo das morteiradas ainda toldavam a bela cidade de Lobito, com a restinga ao fundo, ladeada de coqueiros e de belas vivendas.
Bernardo teve medo de levantar a cabeça e olhar a sua cidade, através do buraco da âncora da traineira, por onde a água do mar entrava aos jorros...Adeus Lobito, adeus
minha terra de Angola!
Já recomposto do susto, o seu amigo Pacavira agarrado a uma boia com o nome da embarcação, o Bengo, ainda nem queria acreditar que estava a caminho de um porto mais seguro. A máquina fazia trepidar a estrutura da traineira, com a sua proa altaneira, cortando o oceano em direcção ao porto de Luanda, um pouco mais a Norte. O destino final seria Lisboa ou outro porto, depois de atestarem os depósitos para a longa viagem... A noite caíra e o Sol-posto manchava o mar com pinceladas alaranjadas e de um encarnado intenso. Algumas gaivotas seguiam a marcha do Bengo, à cata de restos da comida que não faltava a bordo. O rumo era Walwis Bay, na Namíbia, onde poderiam efectuar algumas reparações urgentes de que a traineira carecia. O Bernardo, ainda estupefacto, contemplava a costa angolana, pensando na família que ficara escondida no mato, esperando que a guerra acabasse, para se juntar a ele na cidade de Lobito. Relembrava-se de uma Angola em paz, com o porto cheio de barcos carregando ou descarregando mercadorias e traineiras despejando caixas de peixes apanhados ao largo de Moçâmedes e Baía dos Tigres. A traineira, já com a noite sobre o mar, após uma estadia breve em Walwis Bay, voltou a rumar para o Norte de Angola, passando por Novo Redondo e Porto Amboim...
Após alguns dias de mar, enfim, a cidade de São Paulo de Luanda, onde o Bengo iria fazer escala, para se reabastecer de combustível e víveres para uma longa viagem. Na memória do Malaquias, a saída inesperada da cidade de Lobito e o futuro incerto para a sua família. Deitando contas à vida com o seu amigo Pacavira, natural da bela cidade de Benguela, assim falava, perturbado pelo tantan do motor da traineira:
Espero chegar a Portugal e ver como vão as coisas por lá, após o 25 de Abril, e só depois mando ir a mulher e os meus dois filhos, ainda escondidos na mata em casa do meu sogro...
Pacavira, muito pensativo, limpando as unhas com um canivete e sentado sobre uma caixa de madeira ainda com as marcas da empresa de pesca (N & Silva), deitava contas à vida. Falou em voz alta:
É a guerra, amigo Bernardo? Enquanto Angola tiver esses malditos diamantes e o negro petróleo não vamos ter sossego...
A traineira branca de nome Bengo, após alguns dias de viagem, aportara Luanda para se reabastecer, não obstante o clima de guerra civil já aí reinante.
Numa tarde cinzenta, a traineira rumou mar alto, a caminho de S.Tomé a próxima escala - tendo na sua rota as ilhas de Cabo Verde, as Canárias, a Costa de Marrocos e, por fim, Portugal desejado. Bengo, donde vinham o Bernardo e o Pacavira, chegou à costa portuguesa, mais precisamente ao porto de Lagos, no Algarve, após uma escala forçada em Las Palmas e em EL Jadida, em Marrocos. Pensavam ter encontrado a Terra Prometida Portugal - o país donde partiram os navegadores, séculos antes, à descoberta do Mundo.
(Não vou narrar a viagem, que só ela daria para mais cinco capítulos) mas, adiante:
-II- A CHEGADA
Foi num 10 de Junho do ano de 1975 (Dia da Raça ou de Camões, como queiram), data em que pisaram, pela primeira vez, a terra portuguesa, ficando a traineira Bengo abandonada e triste, apodrecendo num cais de Lagos. A Capitania recolheu os refugiados. Foi então que ouviram a nova palavra Retornado, escrita numa guia, passada pelas autoridades, para se apresentarem em Lisboa no IARN [Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais] recém-criado pelo governo português de então, para Apoio aos refugiados que chegavam, diariamente, das Ex-colónias portuguesas de África.
Pacavira chamaram-nos de Retornados?
Quem?
Aquele marinheiro da Capitania, o de boné sebento, barba por fazer e cravo encarnado no peito da farda!
Esse mesmo!
Sou refugiado e não Retornado dizia-lhe o Bernardo, bastante aborrecido! Nem sou de cá! Não nasci em Portugal! Sou de Angola, de Lobito! Refugiado e funcionário de
Portugal, SIM...
Um velho maximbombo, estacionado debaixo de uma frondosa árvore, ia partir para Lisboa. Entraram. A viatura ainda tinha lugares vagos e iria parar, sucessivamente, na Vila do Bispo, Aljezur, Sines e Alcácer do Sal, antes de rumar para o IARN. Pacavira observava a cidade através da janela do velho maximbombo, que largava para o ar uma densa fumarada negra. Todos os passageiros estavam calados e espantados com o que viam.
Passaram por uma das ruas de Lagos, onde decorria uma manifestação do PC, no
meio de bandeiras encarnadas e cartazes:
Mais nenhum soldado para África,
Portugal para os portugueses,
África para os africanos
O Bernardo assim falou ao companheiro:
Isto está mau, caro amigo, penso que pior que Angola donde saímos, há já algumas semanas...
O motorista da fumegante e velho maximbombo, rangendo os dentes, abrandou a marcha e viu-se engolido e forçado a parar junto a uma esplanada, para deixar avançar o desfile, cujos manifestantes entoavam, cadenciadamente, as tais palavras de ordem.: o povo unido jamais será vencido... Ao verem o maximbombo com as letras do IARN, os manifestantes e os circunstantes tomaram mais ânimo e desataram aos berros:
Seus colonialistas vão mas é para as vossas terras! Correram connosco de lá e agora vêm tirar os poucos empregos que temos para os nossos filhos...
O motorista, de barba de vários dias, camisa bem suada nos sovacos e boné descaído sobre a testa, animado pelo ruído da rua, foi comentando, enquanto palitava os dentes ainda com bocados do pastel de bacalhau comido na tasca do tio Zé:
Pois é verdade! Já éramos poucos aqui e agora passo os dias a levar esses malandros dos retornados para o IARN, em Lisboa. Para os nossos filhos, os desta terra, nem uma camioneta para irem para as escolas, aqui a dois passos...
Bernardo, mesmo sem querer, entrou na conversa:
Olha, senhor motorista, se vocês tivessem feito uma descolonização “exemplar” e não um simples abandono das colónias ao bicho-homem, nós não estaríamos aqui, agora, entende!
O motorista desviou-se de um caixote de tomates, caído no pavimento, e não deu resposta ao seu interlocutor com a face queimada pelo mar, para bem de todos os
passageiros já inquietos com o tom da conversa...
Entretanto, a manifestação política deixara a rua livre e concentrava-se, agora, na Praceta da Revolução, previamente preparada com altifalantes, tribuna de tábuas pregadas e bidons. O Maximbombo conseguiu seguir viagem pela marginal, com o mar à esquerda e as praias cheias de veraneantes, pois decorria o mês de Junho do ano de 1975.
autor desconhecido )
1975
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