Quando nós eramos kandengues, punhamos os livros no chão, ali mesmo naquele largo do Preventório Infantil de Luanda, de areia batida pelos pés dos mais velhos que passavam ali sempre que iam para as bumbas ( trabalho ).
Naquele largo, descalçávamos os kedes (para não estragar, senão a mãe nos ia ralhar) para fazer de baliza e com uma bola de meia bem forrada. Enquanto uns faziam as balizas e marcavam a área com os pés descalços, outros iam jogando a caçumbula.
Aí o Barata e o Beto mandavam a gente parar com a brincadeira e diziam:
Vamos fazer escolha, vamos fazer escolha...Eles saltavam e faziam medição. Um escolhia o Nando, o Zé Antunes, o Tó Barata, o Tino, o Antoninho e o Kubota…..
Vamos fazer escolha, vamos fazer escolha...Eles saltavam e faziam medição. Um escolhia o Nando, o Zé Antunes, o Tó Barata, o Tino, o Antoninho e o Kubota…..
O outro escolhia o Gila, o Dário, o Beto, o Tonito, o Perninhas, o Rui e o Victor…. e aí iamos começar nosso trumuno.
Os trumunos de bairro, em alguns casos, não têm duração certa. Podem ir aos 90 minutos ou mais, as vezes era noitinha já e ainda se jogava. Mas também podem ter menos tempo. As substituições são à vontade dos atletas e craque que é substituído pode entrar outra vez. Às vezes os adversários são apanhados distraídos e uma equipa, na dança das substituições, fica a jogar com mais um atleta do que a outra. Cuidado! O tempo de jogo depende do cabedal dos integrantes da equipa.
Nem é futebol de campo nem de salão. Cada equipa pode alinhar com sete, oito ou mais jogadores. Joga quem aparece e se aparecerem mais do 11, há lugar para todos. Nos trumunos só marca golos quem tem o pé afinado. Muda aos cinco e acaba aos dez. Ali o golo é uma festa.
O Beto virou doutor, passa nem cumprimenta - doutor não conhece amigo da pelota. Ah, mas eu não esqueço quando aquele madié pegava na pelota ninguém lhe agarrava, dava cada vírgula e adiós que os outros caíam com o mataco no chão, diziam até que ele ia ir em Lisboa jogar.
O Mukuna guarda-redes, (pópilas, era cada mergulho! A garotada aplaudia).
Tinha também o Kubota...- Coitado do Kubota! Nós lhe chamávamos assim porque ele quando corria batia com os calcanhares no mataco.
É verdade, e o Rui? Que é feito, que é feito dele? Aquele rapaz tinha uma berrida! Quando ele pegava com a bola ninguém lhe agarrava até na baliza.
E o Gila? O miúdo pequeno que pulava os quintais para roubar mangas e cajús e depois batia uma fuga das velhas que queriam lhe agarrar. Fraquito , mas tinha uma berrida! Nunca mais! Nunca mais! Tempo da minha descuidada meninice, nunca mais!...
Era bom aquele tempo, era boa a vida a fugir da escola, a trepar aos cajueiros a roubar os doceiros e as quitandeiras às caçumbulas...
No tempo dos trumunos rijos, no campo do Preventório Infantil de Luanda, éramos os campeões do mundo. Nas férias, as partidas duravam todo o dia e não nos restava tempo para pensar em coisas más. Apesar de amigáveis, os jogos entre bairros eram, também, a oportunidade para manifestarmos o orgulho pelo nosso bairro, pela nossa rua, pela nossa gente. Dávamos o litro para não perder. Muitos partiram pernas e tiveram outras lesões graves para evitarem a derrota.
Na hora de perder, a humilhação não era apenas nossa, dos atletas. Era da claque que nos acompanhava para nos ver jogar, era dos moradores todos lá do bairro.
Os miúdos do meu tempo, hoje quase todos acima dos 50, mostraram isto mesmo, sem pedir nada em troca. Era um tempo em que nós, os meninos, cientes dos nossos deveres, nos esquecemos dos nossos direitos.
E a gente fazia o nosso trumuno... Oh, como eu gostava!
Eu gostava qualquer dia de voltar a fazer medição com o Mukuna... escolhia o Beto, o Victor, o Tonito, o Nando, o Dário e o Rui e íamos fazer um trumuno como antigamente!
Ah, como eu gostava... Mas talvez um dia quando a sombra das mulembeiras for melhor, quando todos os que isoladamente padecemos nos encontrarmos iguais como antigamente talvez a gente ponha as dores, os medos desesperadamente no chão do largo de areia batida pelos mais velhos que iam bumbar.
Vamos então fazer o nosso trumuno...
Zé Antunes -adaptado de um mail de Vergilio Morais
1973
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