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18/06/2012

O LICEU FEMININO...

Para Todas as kivitas que estudaram neste liceu, recordada aqui depois da debandada por mwana pwo





A minha relação com o Liceu D. Guiomar de Lencastre é também antiga. Comecei a frequentá-lo, andava ainda na escola primária (Escola 83, na Vila Alice). Ia com a minha mãe. Gostava de ir brincar para a «Cerca» e, apesar de um medo enorme, era atraída pelo fosso dos jacarés. Achava graça àquele liceu que mais parecia um palácio, de tão grande que era para mim, com as suas escadarias e imenso jardim cheio de árvores cuja sombra era fresca. Gostava dos teatros que lá se produziam (no palco de um dos ginásios e também no anfiteatro) e adorava ir ao camarim (que tinha uma entrada pelo jardim) ver todas aquelas roupas coloridas de tule e cetim, tecidos que eu associava às princesas e às rainhas.

Assim foi, para mim, o liceu - então feminino - D. Guiomar de Lencastre, durante quatro anos. Depois, entrei para o ciclo preparatório, na Escola João Crisóstomo, hoje Ngola Kanini.

Continuava a ir ao liceu, já misto, mas sempre D. Guiomar de Lencastre.
Ia com o meu pai, buscar a minha mãe mas um dia, em que quase todos os meus colegas foram a uma missa (eu estava dispensada das aulas de moral e religião), eu e mais umas amiguinhas atrevemo-nos a ir a pé ter com as nossas mães ao liceu. Foi uma aventura que nos valeu uns raspanetes.

essa altura comecei a reparar nas professoras e a decorar os nomes delas.
A directora, a Luísa Melo, com o seu ar bonito e austero, a Darcília, a quem algumas alunas chamavam «se t’agarro, se t’apanho», imitando a sua forma particular de andar dada a deficiência que possuía. No género da Darcília, havia uma outra (de que não me lembro o nome) que eu adorava ouvir dizer, de forma espontânea, a palavra wundervoll. Era certamente de germânicas (professora de inglês) e penso que era de origem alemã.

Lembro-me da Dra Irene Calapês, claro! (morava num apartamento perto da minha casa), das magríssimas Cesaltina e Gracelinda, da Lígia Carvalho, da Ana Maria Grande, da Aida Freudenthal, da Dilma, a exuberante professora de música e minha professora de piano, da Mimi Diniz da Gama, da Elisa (de lavores), entre tantas outras.

Nessa altura gostava de um menino que já andava no liceu e que tinha conhecido numa «farra» de carnaval casa dos Viterbos (o Miguel e a Paula eram meus colegas na Academia de Bailado de Luanda). Eram dois irmãos e costumava encontrá-los também nas festas do Fred (no largo da Maianga) que tinha uma discoteca em casa.

Por isso, estava sempre em pulgas para ir «buscar a minha mãe» ao liceu.

No ano de 1973 entrei finalmente para o liceu como aluna. Nesse tempo já se podiam usar as batas curtinhas. As minhas eram tão curtas que a minha mãe mandava sempre fazer uns calções do mesmo tecido; para quando eu fosse ao quadro... Mas era ela que não gostava de me ver de bata comprida, pelos joelhos, apesar das minhas pernas que pareciam dois esparguetes.

Lá estavam as mesmas professoras e também alguns professores homens: o Seabra e o Eanes Ferreira (filho da professora Clotilde, de Ginástica). A Lígia era a mesma, bem como a Dilma que se fechava no armário dos instrumentos musicais (naquela sala no fundo do jardim) e, quando nós achávamos que ía ser borla.... Zás! Ela saía lá de dentro, tipo «Surprise!», mas gritava primeiro «Abre-te césamo!». Era um bocado passada, mas muito fixe. Muito mais tarde, nos anos 80, numa das minhas viagens a Portugal para os habituais cursos de verão, ainda fui com ela lanchar à pastelaria Ferrari (antes do incêndio, portanto).

Continuava a gostar de ir para a cerca, mas já não visitava tanto os jacarés. Também não fumava. Eram os tempos da Pró-Associação e do Grupo de Trabalho; do MPLA e da UNITA; da FNLA. O movimento político entrava na escola e separava os alunos por «simpatias».

Mas o ano lectivo não chegou ao fim. A «invasão» pelos alunos da Industrial (?) apanhou-nos em plena aula de inglês. Enquanto a professora Lígia ficava branca de medo, nós espreitávamos pelas janelas. Quando voltámos a olhar para a secretária, ela havia «bazado», deixando-nos ali, uma turma de miúdos de 12 anos, sozinhos.

De tudo isso, a última imagem que retive foi a do professor João Freitas e da Fátima Fernandes a segurarem os portões. Depois... não me lembro de mais nada.

Em 1975 começaram os confrontos em Luanda e o nosso liceu transformou-se em acampamento de desalojados e feridos que vinham dos bairros. Enquanto alguns colegas partiam de Angola com as suas famílias, os que ficavam iam ajudando no que fosse preciso.

Lá íamos todos os dias, apesar dos tiros.

Eu tinha ainda 12 anos. Fui destacada para as enfermarias. Um dia, puseram-me um frasco de álcool numa mão e um pacote de algodão (ou seriam gazes?) na outra. Enquanto o estudante de medicina destapava a ferida de uma mulher que olhava para mim desesperada, ia-me dizendo: põe álcool no algodão, vou ver se ainda cá está a bala. Os olhos da jovem mulher eram pretos e doces, a ferida sobressaía cor de rosa na sua pele negra. Senti que podia desmaiar e passei o que tinha na mão a alguém que estava atento a mim e me mandou sair.

A minha mãe também ia. Pedi-lhe que me «colocassem» noutro lugar e fui parar à cozinha. Mandaram-me descascar batatas e não ficaram satisfeitos com o meu trabalho de menina sem prática nessas lides. Fui novamente mudada. Desta vez para o «posto» certo, a secção das crianças. Levava-as em fila para a cantina e, depois de comerem, brincava com elas, fazia jogos, entretendo-as para não pensarem nas suas mães feridas, mortas ou desaparecidas no meio dos tiroteios.

Às vezes ajudava a descarregar mantimentos que vinham em camiões que entravam pelas traseiras. O jardim continuava lá!...

Haviam-se acabado as aulas de ballet, de piano, as professoras de francês e inglês que iam a casa. As empregadas domésticas deixaram de ir trabalhar e as crianças não podiam ficar sozinhas.

Em tão pouco tempo, vi tudo aquilo a que os meus pais sempre me haviam poupado.
No liceu, aprendi que a vida afinal podia mudar de cenário. No liceu, amadurecia cedo vendo feridos e mais feridos de todas as idades chegar diariamente. Vinham dos bairros suburbanos e eram aqueles que não estudavam, nem punham os filhos a estudar nos liceus...

Depois da independência voltei para o nosso liceu!

Era o «Ano da Recuperação». Todos deveriam recuar um ano lectivo para se «acertar o passo».

Os programas haviam mudado e já dávamos História de Angola.

O D. Guiomar de Lencastre foi rebaptizado. Agora chamava-se Nzinga Mbandi.
Das professoras antigas só me lembro da minha mãe, da Aida, da Lígia, da Gracelinda... A Fátima Fernandes era a directora. Exigente, mas amiga. E tinha mão na malta que, entretanto, se tornara rebelde!

O Sr. Kituxi, hoje o nosso grande mestre do hungo, trabalhava na secretaria.

Entrei para o 4º ano. Não gostava das aulas de Formação Política (Marxismo-Leninismo), porque eram à tarde e dadas por uma colega nossa que era da «Jota» (JMPLA). O meu professor de matemática era o escritor Henrique Guerra. Gostávamos dele. Liberal. Permitia que saíssemos a meio da prova para ir ao quarto de banho e quando não acabávamos o teste, deixava-nos a terminar, pedindo para o entregarmos, mais tarde, na sala dos professores. Mas nem por isso as notas eram brilhantes.

Aos sábados havia campanhas de limpeza e todos participávamos. Não, não éramos obrigados. Gostávamos e acreditávamos mesmo que o nosso país precisava que todos arregaçássemos as mangas para fazer de tudo para o desenvolvermos.

O ambiente era diferente. Tão diferente dos tempos em que eu, menina pequena ia com o meu pai buscar a minha mãe. Parecia ter passado tanto tempo...


No ano seguinte fiz o 5º ano e, ainda com 16 anos vi-me na Universidade a fazer o Pré-Universitário.
Nesse ano comecei a dar aulas de dança e a dirigir a Escola de Dança, pois as professoras tinham ido embora... Eram tempos de experiênciar coisas novas.

Entrei para a Faculdade de Economia, mas nunca concluí o curso. Fiquei-me pelo 3º ano.

Viria a formar-me em Dança, mais tarde. Muito mais tarde...

Morava (e moro) perto do liceu. Por isso, mesmo depois de sair, passava sempre por lá e, do lado da rua, ia assistindo à sua morte lenta por degradação.

Um dia, vi obras. Uma empresa estrangeira recuperou-o todo. Ficou lindo! Outra vez pintadinho de branco, agora com umas cenas da vida da rainha Nzinga Mbandi a castanho na fachada da entrada. Os vidros todos novamente. Mas o jardim... o jardim nunca mais deu para pôr igual...

Hoje, quando me cruzo com o NOSSO liceu, penso na forma como a história passou por ele e por mim, penso em tudo o que lhe aconteceu a ele e a mim, em todas as pessoas que por ele passaram... e por mim.

Os alunos ainda enchem as varandas, mas o jardim já quase não tem árvores.
No seu espaço, existem agora uma série de pavilhões construídos para albergar o número de alunos que não para de aumentar.

No camarim das roupas coloridas e atraentes vivia um militar maluco que andava nu e se lavava numa torneira onde antes se ligava aquela mangueira imensa que regava a relva, hoje penas terra vermelha.

Mas o liceu está lá. Nzinga Mbandi! Firme e cheio de jovens sempre de batas brancas. Alguns vidros outra vez partidos e alguns papéis no chão.

A zona dos campos de desporto, na parte de trás, foi negociada e agora é um parque de estacionamento de uma empresa qualquer.

No largo em frente, onde paravam os carros dos papás e as motos dos «pretendentes» à hora da saída, kitandeiras vendem mangas, abacaxi, abacates, mikates e chinelas havaianas em grandes bacias; vendedores ambulantes apregoam cigarros, roupa interior, acessórios para carros, sofás, fatos de banho, espelhos, cassetes de filmes pornográficos e ferragens; os ardinas também passam para vender os jornais (mais caros que o preço neles impresso) e a revista Caras edição Angola, onde um jet set de novos ricos não se envergonha de afrontar, em poses estereotipadas e sorrisos idiotas, os que pouco ou nada possuem.

Nas conversas, quando me perguntam onde estudei, respondo: no Nzinga.
mwana pwo

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