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19/06/2012

HISTÓRIAS DE LUANDA



A forma como tudo mudou em Luanda, depois do 25 de Abril, é difícil de descrever, aí que a descrição que se segue seja longa, muito longa.

Em Luanda, trabalhava na Represental, Lda. Eu e dois colegas éramos os únicos brancos, mas isso não impedia que, até então, fossemos todos amigos, como é normal numa Empresa. Cerca de um mês depois do 25 de Abril, tudo começou a mudar. Passei a ser marginalizado. Fui várias vezes agredido sem saber por quem, agressões verbais, sempre acompanhado da frase maldita: "vai-te embora ó branco!". Agressões aleatórias, por colegas negros, sem qualquer razão que a não a denunciada pelo "vai-te embora ó branco!" aconteceram várias vezes. O ambiente começou a ficar bastante hostil. Em Maio de 1975, faltava pouco para ir para Portugal, ia tentando aguentar a situação. Não contava nada em casa, para que não ficassem preocupados.
Recordo o terror vivido numa das minhas deslocações para a Mutamba. No autocarro da carreira 22, do trabalho para a casa no Bº. Popular nº 2. O autocarro ia a abarrotar , claro que só iam pessoas de cor, eu era o único branco. Pouco depois numa paragem ainda na baixa de Luanda, entrou uma antiga professora de ciências, que ia até a 7ª Esquadra pois morava na Madame Berman . O autocarro foi seguindo o seu percurso, e esvaziando. Quando não restavam mais do que uns 20 passageiros, velhos e novos, todos negros, mais eu e a professora, começaram as provocações, com gritos de "morte ao branco" e a fazerem obscenidades ao pé de nós. Permanecemos aterrados, como que paralisados, eu e a professora, sem sequer ousarmos olhar um para o outro, procurando não dar qualquer pretexto para que algum iniciasse o ataque. Eram inúmeras as histórias de autocarros desviados para os musseques, com violações e assassinatos, pelo que procurámos evitar qualquer comportamento, gesto ou olhar que pudesse servir de pretexto, mas foi tanto o terror porque que passamos nessa viagem, ainda hoje me lembro com pavor desses momentos, vi a morte à minha frente… Acho que só não aconteceu porque, quer eu quer a professora, ficamos paralisados e parecíamos umas múmias sem vida, sem reacção, invadidos pelo terror. O coração batia mas o cérebro estava paralisado. Foi a primeira vez na minha vida e única em que paralisei de terror tal foi o pavor infligido sobre nós, durante essa viagem. Quando chegamos à paragem perto da 7ª Esquadra, nem nos conseguimos levantar, tal era o terror sentido. No entanto eles, que nos tinham identificado, encarregaram-se de nos empurrar porta fora, como quem atira com sacos de batatas, e com uns ameaços e uns "anda branco, por hoje tens sorte!". Depois disto, nunca mais andei de autocarro. Fiquei ali acompanhei a professora a casa e fui até ao Bairro Popular a pé.

Cheguei muitas vezes ao local de trabalho para deparar com cartazes a pré-anunciar explosões para as nove da noite. Sozinho, meio perdido no meio da confusão, voltava para trás, pé ante pé, com medo de ser notado pelos muitos grupos de miúdos, com um máximo de 10 anos, que andavam com varapaus na mão, a perseguir tudo o que mexia. Entravam pelas casas adentro, espancavam quem lá encontrava, saqueavam o que lhes apetecia e depois, mais tarde, iam os mais velhos acabar o serviço - o que consistia em matar quem persistia em lá ficar, mesmo depois dos saques. Num dos dias vi um destes grupos, enquanto me afastava da Represental, e imaginei de imediato o meu fim ali mesmo, às mãos de uma dezena de crianças. Por milagre de Deus, eles não me viram, pois iam do outro lado da rua e era noite. Vi-os a entrar para uma das casas da rua e eu só ouvi os gritos dos infelizes que lá viviam. Afastei-me o mais depressa que pude, mas sem correr para não atrair as atenções.

Num outro dia assisti a dois ou três negros a tocarem à campainha de um prédio. Quando alguém veio à janela, dispararam as metralhadoras que traziam. Nem parei para olhar, afastei-me o mais depressa que pude. Soube, depois, que tinham abatido o proprietário de uma farmácia.

Andar na rua era, assim, um risco grande. Valiam-nos as muitas árvores existentes à noite e a pouco iluminação. Por outro lado, era pouco crível um branco andar pela rua de noite, havia o recolher obrigatório pelo que eu vestia um casaco preto e uma calças castanhas, e assim era mais difícil reparem em mim.
Era frequente ver passar camiões da tropa, com panos pretos a tapar o interior. Dizia-se que levavam pessoas que tinham sido mortas.

Havia milhares de angolanos brancos que não conheciam Portugal, pois já há gerações que as famílias respectivas lá estavam. Dessas morreram famílias completas, para saciar a sede de vingança. Nunca cá ouvi referência alguma a esta situação.

Lembro-me doutra situação que aconteceu estava eu no escritório onde trabalhava, no Largo Serpa Pinto, de frente para as Obras Públicas. A certa altura apercebi-me de uma grande confusão no local de onde saiam os automóveis e deixei-me estar a observar e tentar perceber o que era. Vi um homem branco a ser agredido à paulada, e ser arrastado. Até o ferro da paragem do maximbombo foi arrancado para o agredirem. O homem conseguir meter-se por baixo de um carro estacionado. Entretanto vi parar um carro cheio de negros, conseguiram tirá-lo debaixo do carro onde se tinha escondido meteram-no dentro do carro onde viajavam, e arrancaram em alta velocidade. Os meus colegas que trabalhavam comigo, disseram que era o carro da sede do MPLA, para onde o levaram e onde acabou por ser assassinado. Coisas destas eram constantes. Soube depois que tudo tinha começado quando o infeliz ia a tentar sair das Obras Públicas e um grupo de trabalhadores, de rádio ao ombro, não permitia a passagem do automóvel. O homem teria parado, e pedido para o deixarem passar. Ora, como podia um branco estar a dar ordens!? Só podia estar a pedir para morrer... e foi o que aconteceu.

Quantas vezes não vinha uma rajada de metralhadora do morro que existia atrás do palácio do governador? Muitos morreram assim, sem que nada os protegesse das balas perdidas. Não havia pão, não havia leite, não havia um mínimo para nos alimentarmos, em lugar algum. Tive alturas em que esperava que uma bala me matasse como quem espera a coisa mais normal da vida, nunca pensei ser possível sobreviver, tal era o ódio de ataque aos "brancos". Pensei que ia lá morrer, pois além de toda a violência contra nós, também se guerreavam entre eles e, frequentemente, ameaçavam rebentar os depósitos da gasolina e aí Luanda seria uma bola de fogo.

De todos as situações porque a família da São Ribeiro e família passou, houve uma que a marcou e a traumatizou mais. Foi na altura em que o bairro onde morava a São Ribeiro na Vila Alice "ficou no meio" de um ataque das forças do MPLA contra as forças da FNLA. Passámos a noite toda com crianças de dois e quatro anos debaixo das camas, com um tiroteio sem fim, lá fora. O Chico deitava-se na Varanda da Vivenda e gravava o tiroteio. No quintal estavam forças do MPLA, armados até aos dentes, com lança-roquétes , granadas, tudo que era possível. Foram tantos os tiros que atingiram a casa, mas por Deus nenhuma granada a atingiu. Estaam todos petrificados de medo, quando lhes bateram á porta aí a respiração deles parou... , de rastos, o chico foi à porta e abriu-a. Os do MPLA pediram uma garrafa de óleo pois as armas estavam a encravar e, de caminho, perguntaram se havia liamba. Face à resposta negativa do Sr. Ribeiro sobre a liamba, eles voltaram para as posições de combate.

A manhã chegou sem que ninguém tivesse conseguido pregar olho. Num acto de desespero o Sr. Ribeiro, saiu de casa, em direcção ao largo e foi comprar carvão ao estabelecimento do Sr. Amaro. Eles continuaram nos esconderijos.

Um grupo de tropas Portuguesas, penso que dos Comandos a 2044, ia a seguir em alta velocidade pela Rua de Serpa, quando começou um tiroteio muito forte. Tiveram de parar e correram, saltando muros, e deitaram-se no chão. Lembro-me que um, ao cair, bateu num vaso em pedra e acho que deve ter partido qualquer coisa pois, depois de ter abrandado o tiroteio, quando se foram embora, tiveram de levar esse camarada em braços. Os covardes esqueceram-se que estavam lá os compatriotas deles. Fugiram que nem ratos.

Num desse intervalos entre tiroteios, o meu pai disse: "Tudo para os carros!". A correr, quase uns por cima dos outros, fugimos do nosso bairro que estava a ser massacrado e fomos para a baixa de Luanda, para a casa da filha da Dona Romana, casal que mais tarde seriam padrinhos de casamento do meu irmão Fernando em Lisboa. Nunca mais voltei ao Bairro Popular. Saí de casa com a roupa que tinha e o que me valeu foi uma mala de roupa, um saco dos militares com os meus pertences, aparelhagem Onkio 900 e os discos de venil que ainda guardo.




Retornados no aeroporto de Lisboa


Antes da viagem de volta à metrópole, trocaram-me 5 mil angolares por 5 mil escudos, pois os angolares não valiam nada fora de Angola. Deixei uma ordem de transferência do meu outro dinheiro para aqui, transferência essa que, até hoje, nunca se completou. Finalmente, fui para o aeroporto, eu Minha mãe e minha irmã e arranjar lugar num avião. Foi preciso ter recorrido aos conhecimentos que tinha por trabalhar na Represental que arranjei os bilhetes. Mas nessa altura eram milhares e milhares os que dormiam no chão, no aeroporto, crianças , sem condições, sem alimentação, á espera de poder

conseguir regressar! O que eu vi, meu Deus, quanto desespero.


Saímos de Luanda no dia 21 de Junho de 1975, ás 10h00. Ao sobrevoar Luanda chorei no meu intimo, porque eu adorava aquela terra, tão linda, tão maravilhosa. Senti, nesse momento, que não voltaria lá mais...

Porquê sair assim? Porquê passar por todo este terror para milhares de pessoas que chamavam a Angola a sua terra? Foram muitos dias meses de um terror que não esquecerei, vivido na primeira pessoa.


Obs. Será difícil para todos os senhores do 25 de Abril de 1974, compreender que o tratamento dado aos expoliados das nossas ex-colónias foi indigno, e compreender que eles (esses senhores) não merecem qualquer respeito por parte dos que foram lá maltratados e aqui rejeitados e apelidados como (os retornados). Os ricos safam-se sempre quem sofre é sempre o povo...Não acreditam!...Quem era lá rico aqui também continuou a ser rico...Os diamantes estavam para eles á mão de semear. O povo sempre o Povo. É quem paga, as cabaladas .O que moveu o 25 de Abril e 1974 foi a sede do Poder.





1975

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