Viagem relatada por um soldado meu amigo que comigo viajou quando regressei a Angola em 1970, foi mobilizado para a zona de Cabinda, ainda hoje somos amigos pois ele só regressou a Portugal em 1975, e vive em Sintra, meu amigo Amilcar Neves Castro.
De 19 de Novembro a 29 de Novembro, concederam-lhes 10 dias de licença que, as normas (do tal artigo 20.º das NNCCMU), lhes concediam antes de embarcarem para o Ultramar. Durante este período íam-se despedir da família e preparar tudo para aquela longa ausência e, gozados que foram, reuniram-se de novo no CIM, onde seguiram de comboio para Lisboa para embarcarem no navio “Vera Cruz”, um belo transatlântico de 21.000 toneladas, outrora utilizado nas carreiras de África e para o Brasil. Chegados à doca da Rocha do Conde Óbidos, ali desfilaram no cais de embarque em continência ao representante de Sua Ex.ª o Ministro do Exército. Cada um dos seus passos tinha de ser ritualizado nestas cerimónias repetitivas, fastidiosas, mas inevitáveis.
Embarcáram em Lisboa em 30 de Novembro de 1970, pelas 16 da tarde, uma hora bem escolhida, pois com os atrasos fez-se 19 horas e, estando já pronta a refeição no navio, tiveram que ir Jantar – alguém os chamou, – diminuindo com isso o número de militares no convés e o clamor das despedidas junto do cais, a evitar, embora nesta altura ele já tivesse perdido grande parte do seu dramatismo: a visão apavorante dos primeiros tempos da guerra. Mesmo assim, alguns militares ainda tiveram ali os seus familiares num último adeus. O navio fez soar a sirene, grave e autoritária, ia partir. Alguns choros se apossaram das mães, esposas e noivas que ali se deslocaram, vindo dos mais diversos pontos do país. Houve acenos de lenços, brados de últimas despedidas. E o navio lá seguiu, indiferente àquele clamor e mesmo à beleza luminosa das colinas da cidade de Lisboa. Passou por debaixo da ponte, reduzindo a um minúsculo pináculo a igreja de Santa Engrácia, depois apequenou a Torre de Belém, saindo à barra do Tejo, nesse dia transformado, para muitos, num vale de lágrimas. Pouco depois só se erguia cá atrás a bruma, que era a Serra de Sintra, o último testemunho do Portugal metropolitano e, por fim, mergulhámos no oceano infinito, rumo ao desconhecido.
No “Vera Cruz” foram tratados com a dignidade de passageiros civis, fazendo uso dos luxos e requintes de que o navio desfrutava, que incluía entre outros: piscina, cinema e sala de jogos. Os oficiais ocuparam a 1.ª classe, os sargentos a 2.ª e as praças a 3.ª ou arremedos disso, pois grande parte dos soldados dormia nos porões, em beliches improvisados para aquelas viagens, escuros, sem as mais elementares condições de conforto. Além disso, tinham que gramar com o ruído incomodativo da casa das máquinas. Valia-lhes que podiam vir até ao convés apanhar ar fresco e observar o mar, que era igual para todos, e às vezes proporcionava surpresas agradáveis, com peixes voadores a perseguirem o navio, e outros maiores a virem à superfície da água fazer um giro ao horizonte. Alguns militares enjoaram e passaram por maus momentos, mesmo indo na 1.ª classe, contudo, em geral, todos apreciaram a viagem.
A oficialidade ocupava belas suites, sendo-lhe destinado um restaurante de luxo, onde eram servidas refeições opíparas, com pratos cheios de enfeites rebuscados, ao gosto da burguesia. Lembro-me de um que vinha com um artístico moinho à vela, ostentando desfraldadas velas brancas, que servia só de adorno, não era para comer, claro. Os sargentos também não tinham razão de queixa, e neste aspecto, nem sequer as praças, embora tivessem de comer por mesas: saíam uns e entravam outros. À noite éram frequentemente atormentados com o espectro da zona militar que iríam ocupar, dos perigos que os espreitariam.
Vendiam-se a bordo máquinas fotográficas, de filmar e projectar, canetas de marcas prestigiadas, rádios, relógios e outros objectos importados, fugidos aos impostos alfandegários, naquele tempo, muito elevados, que alguns aproveitaram para comprar a baixos preços.
O navio aportou em Las Palmas e fomos a terra para visitar a cidade no pouco tempo que tinhamos.
O elemento feminino rareava, mas ainda havia umas tantas mulheres integradas na tripulação a humanizar o paquete e, é curioso, que à passagem pelo equador foi dito, e até nos pareceu que se tinham tornado mais atraentes: os nossos olhos se vidravam nelas.
O “Vera Cruz” atracou no porto de Luanda em 9 de Dezembro de 1970, pelas 09:30, mas só começaram a desembarcar pelas 11:30 da manhã. Seguiram de viatura até ao Campo Militar do Grafanil, no Norte da cidade, e ali mesmo, voltáram a desfilar em continência, perante Sua Ex.ª o general Oliveira e Sousa, comandante da Região Militar de Angola. Ainda passeáram os camuflados pela cidade de Luanda, onde ficáram até dia 13 desse mesmo mês de Dezembro, data a partir da qual iniciaram a viagem para Cabinda, que se estendeu por mais duas “levas”, a 18 e 23 desse mesmo mês, na lancha Aríete da Marinha Portuguesa. A emoção que então os percorria era um tanto estranha, cruzam-se nela o medo, a aventura, a curiosidade e o espanto.
Amilcar um bem haja e obrigado pela narração da tua viagem para a guerra como costuMas dizer.
1970
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